domingo, 26 de fevereiro de 2012

A “REVOLUÇÃO DINAMARQUESA”

Descobri, por intermédio de uma sugestão do excelente crítico literário que é José Riço Direitinho (“`Público”), uma obra sublime. Uma obra que “ultrapassa as definições habituais para o género ‘romance histórico’, pois é uma mistura entre reportagem e drama, atravessada por ideias filosóficas, uma narrativa soberba do choque entre a razão e o dogma, entre o humanismo e a tentação do poder absoluto”.

A envolvente respeita aos primórdios da Revolução Iluminista nos países nórdicos ou, como lhe chamou o seu autor – o escritor sueco Per Olov Enquist –, de uma “Revolução Dinamarquesa” precursora da Revolução Francesa (“o amanhecer da luz” na curta “era Struensee”, 1770/72 e 632 decretos). Sublinhando: “Foi uma importante mensagem para o resto da Europa, e colapsou, mas no fim acabou por sobreviver. Até agora. Os ideais do Iluminismo continuam vivos ainda hoje. O modelo escandinavo de Estado social tem as suas raízes mais finas nesse tempo de Struensee.”

O rei louco (Christian VII), a rainha inglesa (Caroline Mathilde, irmã de Jorge III, casada aos 13 anos), o médico real e “revolucionário de gabinete” (o alemão Johann Friedrich Struensee) e o puritano e futuro primeiro-ministro (Conde Guldberg), eis o quadrado determinante em que assenta toda a trama tão depuradamente relatada. Que também é uma história de amor, um amor essencial entre a rainha e o médico e uma secundária fixação apaixonada do rei para com a sua “Soberana do Universo” (a prostituta Bottine Caterine).

Não resisto a citar três curtas passagens:
· A rainha: “Struensee contara-lhe uma vez um antigo conto tradicional alemão. Era acerca de um rapaz que não conseguia sentir medo; ele partira para o mundo para “aprender a conhecer o medo”. Quão alemã era aquela frase, e misteriosa. (…) Porque havia outro rapaz na história. Era inteligente, dotado, bom e amado; mas estava paralisado pelo medo. De tudo, de tudo. Tudo o aterrorizava. Estava cheio de talentos admiráveis, mas o medo paralisava-o. O rapaz dotado estava paralisado pelo medo. Mas o Irmão Estúpido não sabia o que era o medo. Era o Estúpido que saía vitorioso.”
· O médico: “O que é que eu fiz de errado? Essa pergunta era o pior de tudo. (…) Do seu escritório, dirigira a revolução bastante calmamente, sem assassínios ou aprisionamentos ou coerções ou expulsões, sem se tornar corrupto ou recompensar os seus amigo ou procurar benefícios pessoais ou cobiçar aquele poder por algum motivo obscuro e egoísta. E, no entanto, devia ter feito algo de errado. Nos seus pesadelos nocturnos regressava continuamente aos camponeses dinamarqueses oprimidos e ao episódio do rapaz moribundo no cavalo de madeira. (…) Desenhara rostos de pessoas nas margens da sua tese de doutoramento. Ali havia algo de importante que ele parecia ter esquecido. Observar o mecanismo e o grande jogo, e não se esquecer dos rostos das pessoas. Era isso?”
· O puritano: “Ela merecia aquilo, ela sabia que era a feiticeira nocturna, ela forçara-o a ajoelhar-se à cabeceira da sua cama e o seu poder era grande, Senhor, como é que nos protegemos do contágio do pecado? Mas ele vira-lhe o rosto. Quando levantou os olhos do Evangelho probo e verdadeiro, viu-lhe apenas o rosto, e depois aquela imagem tinha obscurecido tudo o resto e já não viu a feiticeira nocturna mas sim uma criança. (…) Que tipo de vida é esta, pensou ele, em que a justiça e a vingança triunfam, e eu não consigo ver o amor de Deus na escuridão, mas apenas o desespero e o vazio? No dia seguinte já se recompusera.”

E se “talvez tenha pouco significado” que “hoje em dia dificilmente se encontra uma casa real europeia, incluindo a sueca, cuja linhagem não remonte até Johann Friedrich Struensee, à sua princesa inglesa e à filha de ambos”, o mesmo não se aplica a “o contágio do Iluminismo instalara-se, as palavras e as ideias não podiam ser decapitadas”…

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