sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

GASPAR, SCHÄUBLE E KEYNES



A conversa informal captada pelos vistos pela equipa da TVI entre os Ministros das Finanças de Portugal (Vítor Gaspar) e da Alemanha (Wolfang Schäuble), em Bruxelas, na antecâmara da reunião do Eurogrupo, é em si uma delícia, pois desconstrói em segundos discursos cuidadosamente elaborados durante longo tempo. Sempre achei que o mundo das relações pessoais, empatias ou simples embirrações que se desenvolvem nos bastidores das grandes cimeiras ou da diplomacia em geral é fascinante e pesa mais do que o vulgar dos mortais admite como possível. João Cravinho dizia ontem na SIC que Wolfang Schäuble é um dos sobreviventes da política da velha Europa, com larga experiência de trabalho ainda na vivência de Khol e, por isso, um dos poucos políticos que pode na Alemanha assegurar uma transição entre os dois universos e lidar seja com a opinião pública alemã de hoje, seja com os seus pares de última geração e sem memória política.
As imagens e as palavras gravadas desconstroem por antecipação todos os desmentidos, inflexões de discurso ou a simples crucificação da TVI que lhe possam suceder. A imagem é muito forte e a figura de Schäuble ajuda ao peso da situação. Interrogo-me sempre o que é que estes mergulhos nos bastidores trazem à relação do cidadão que vê televisão ou lê jornais com a política. Humanizam-na? Ou cavam mais funda a separação entre o ritual da política e o modo como o referido cidadão percebe esse ritual? Costumo dizer, um pouco em estilo jocoso, que a imagem mais dramática de um governo é a fotografia do mesmo em traje de passeio para assinalar uma qualquer reunião informal do Conselho de Ministros. O que, num governo escandinavo, por exemplo, seria uma fotografia normal, nos nossos governos a informalidade é, por vezes, assustadora. Por isso, para além da chicana política que uma situação de informalidade como a de ontem em regra desperta, não deixo de me interrogar qual é o seu verdadeiro impacto na relação do cidadão com a política.
No título deste post aparece um nome inesperado, Keynes, recriando um trio aparentemente sem sentido. Mas até tem uma forte conotação com o tema, como explicarei de seguida.
No momento presente, estou a reler uma obra que, Paul A. Volcker antigo Presidente do Banco da Reserva Federal americano e ilustre economista, classifica como sendo uma obra que deveria fazer parte da biblioteca de qualquer estudioso do mundo dos negócios que se preze. A obra é “The Economic Consequences of the Peace” (As consequências económicas da paz) de John Maynard Keynes. Nesta obra, como observador atento e interessado desse processo, Keynes desenvolve a sua profunda preocupação sobre as consequências económicas do Tratado de Versalhes que definiu as condições do acordo que colocou em forma de tratado e que se seguiu ao Armestício (não uma rendição incondicional dos Alemães na 1ª Guerra Mundial).
A releitura desta obra é crucial para entender o que já era na época a perceção de Keynes quanto ao equilíbrio mundial e à necessidade de afirmar a Liga das Nações como um esboço de governance da economia mundial. Por paradoxal que pareça, Keynes insurge-se contra as condições impostas à economia alemã e aos seus cidadãos por negociadores incapazes de perceber as consequências a longo prazo da devastação a que a economia alemã iria ser submetida. Uma perspetiva de Keynes algo premonitória do que iria acontecer no período que se desenrolou até à Segunda Guerra Mundial e que iria prevalecer no pós “2ª Guerra Mundial”. É irónico que Keynes desenvolva na época em relação aos alemães uma posição que estes são incapazes de concretizar em relação aos países em divergência no interior da zona euro: a perceção do todo, ou seja da economia mundial.
Mas a relação de Keynes com o diálogo informal entre Gaspar e Schäubel tem que ver sobretudo com a preciosa análise psicológica e de comportamento que Keynes realiza como elemento participante no longo processo negocial dos principais intervenientes no processo. De que figuras da história estamos a falar? Do Presidente Woodrow Wilson (EUA) que Keynes chama de Presidente, do Presidente George Clemenceau (França), do Primeiro-Ministro Lloyd George (Reino Unido) e do Primeiro Ministro Signor Orlando (Itália). É espantoso o modo minucioso como Keynes analisa as personagens, os seus traços de caráter, as suas incompatibilidades linguísticas para as conversas bilaterais, a sua estratégia de argumentação e negociação, os seus valores morais. É como se estivéssemos nos bastidores, não com a TVI ou qualquer paparazzi de momento, mas pela via de um economista de uma cultura imensa, de fina observação e de uma profunda compreensão sobre os mecanismos dos equilíbrios mundiais. Tal como o próprio Volcker o assinala, Keynes analisa em pormenor como é que a dinâmica da negociação e dos comportamentos dos que nela pontificaram acabaram por anular e não capitalizar a profunda autoridade moral com que o Presidente Wilson chegou a essa negociação.
Não resisto a reproduzir uma citação que o próprio Volcker destaca na introdução à versão que tenho entre mãos:
“Uma política que reduz a Alemanha a um estado servil durante uma geração, de degradação das vidas de milhões de seres humanos e de privação da felicidade para toda uma nação é repugnante e detestável – repugnante e detestável mesmo que fosse possível, mesmo que nos enriquecesse, mesmo que não semeasse o declínio de toda a vida civilizada da Europa … As nações não estão autorizadas, pela religião ou por quaisquer princípios morais, a projetar nos filhos dos seus inimigos os erros dos seus pais ou governantes”.
Que lucidez! “As Consequências Económicas da Paz” devia ser uma leitura obrigatória para qualquer político alemão. Um pouco de história para compreender os desequilíbrios de hoje na zona euro.

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