sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

NÓS E OS GRÁFICOS DE KRUGMAN: A “DESVALORIZAÇÃO INTERNA” (um pouco técnico)



Na sequência do último post, regressamos ao tema da “desvalorização interna” sobre a qual reside a grande esperança do mainstream europeu para que os países da Europa do Sul mais a Irlanda recuperem competitividade, consolidando simultaneamente as contas públicas e criando por ambas as vias uma maior moderação de endividamento a médio-longo prazo. No seio da zona euro, “desvalorização interna” significa encontrar as condições necessárias para que preços e custos unitários do trabalho possam desacelerar ou desejavelmente descer relativamente aos países do norte da Europa e recuperar as perdas de competitividade observadas na década de 2000. A “desvalorização fiscal” obtida pela errática e não concretizada medida da redução da taxa social única constituiria uma alternativa parcial à “desvalorização interna”.
A rigidez na descida de preços e salários representa, desde os alertas pioneiros de Keynes nesse sentido, o maior obstáculo ao êxito da “desvalorização interna”. Uma situação de deflação prolongada pode atenuar esse obstáculo, mas o espectro de uma deflação provocada pelo excesso de austeridade e de retração da procura interna é pior a emenda do que o soneto. Tal situação representaria a falência não apenas técnica mas global de toda a abordagem e, por isso, a “desvalorização interna” tem de coexistir necessariamente com o constrangimento da rigidez, na baixa, de preços e salários. É nesse contexto que os cortes de dois meses de remuneração a funcionários públicos, mais do que uma opção formal pela redução da despesa pública em oposição a um aumento de receita, têm um racional que transcende o da correção do défice público. O que Governo e Troika pretendem, irmanados, é com essa medida impor unilateralmente uma redução nominal de salário anual na função pública, contrariando por essa via a rigidez na baixa atrás referida. Sem o assumir explicitamente e conhecendo a tradição da contratação pública influenciar a privada (embora não deterministicamente), o que se pretenderia era criar as condições de “ambiente” e de “contexto” para que a contratação coletiva privada ou os contratos individuais de trabalho que escapam à sindicalização seguissem a norma, ou seja, ajustassem nominalmente em baixa. São conhecidos casos (ainda não generalizados, diga-se) de seguidismo privado dessa orientação, através de imposições unilaterais de reduções nominais de salários. Não é necessário elaborar muito para compreender que essas imposições unilaterais jogam cobardemente com a situação global do mercado de trabalho em algumas profissões: implicitamente, “ou aceitas uma redução de salário ou alinhas na fila do desemprego”.
A manifestação ainda pontual deste fenómeno leva-nos a considerar que a rigidez na baixa de preços e salários não está afastada. O avolumar do desemprego tem substituído essa baixa. Aliás, a observação do comportamento recente de economias sob esta pressão da “desvalorização interna” evidencia que a descida do salário nominal e do custo unitário em trabalho (relação custo-produtividade) é ligeira (ver gráfico que abre este post). É isso que acontece, por exemplo, na Irlanda, que em regra é apontada como uma economia de menor rigidez de mercado de trabalho e com maior propensão ao êxito da desvalorização interna. O último relatório disponível do FMI sobre o ajustamento da economia irlandesa sugere que a descida do custo unitário do trabalho é parcialmente explicada pelo desemprego de trabalhadores em setores de menor produtividade (construção, por exemplo) permanecendo empregados um maior número de trabalhadores em setores (exportadores) de produtividade mais elevada.
A situação portuguesa é mais complexa, sobretudo porque algumas das reformas exigidas pelo resgate financeiro estão, paradoxalmente, a pressionar ascendentemente os preços e com isso a reforçar a referida rigidez, na baixa, de preços e salários. Basta falar nos transportes públicos e na subida vertiginosa de preços para compreender este paradoxo.
O exemplo dos transportes vem confirmar que o principal obstáculo à “desvalorização interna” está no limiar inferior de almofada social que qualquer política desse tipo não pode ultrapassar, por mais bondosa e pacífica que seja a população. E Portugal está hoje nessa situação. O comportamento errático da Troika ilustra essa dificuldade. A sua recente mudança de orientação na Grécia, com imposição de descidas no salário mínimo em troca de uma menor pressão de austeridade, traduz um comportamento aos SSS lamentável porque equivale a experimentação social do pior que se conhece.
Mas nas condições de mudança tecnológica e incremento de produtividade que caracterizam o desafio crucial da economia portuguesa, a “desvalorização interna” por via da redução nominal de salários constitui o maior atentado à eficiência dinâmica. Descer salários equivalerá a um retrocesso histórico dos comportamentos de inovação, induzindo nas empresas mais resistentes à inovação a fuga para a frente das combinações de fatores com utilização intensiva de trabalho mais barato. O nosso problema não é um problema de salários, é um problema de produtividade. Aliás, como mostraremos noutro post, na década de todas as discussões (2000-2010), registaram-se períodos em que o recuo do crescimento do salário nominal foi acompanhado por uma subida e não por uma descida do custo unitário em trabalho. Sim, é para espantar. A economia portuguesa conseguiu a proeza de em períodos de atenuação do crescimento nominal dos salários perder competitividade. É ou não é um problema de produtividade?
E o que espanta em tudo isto é que as medidas conhecidas propostas para resolver este problema alinham todas por uma tónica de extensão: mais dias de trabalho, a famigerada meia hora adicional, menos feriados. A ausência de uma abordagem estrutural ao tema da produtividade é preocupante. Não é falta de imaginação. É uma limitação imposta pela própria abordagem conceptual do resgate financeiro. A sua interpretação da dimensão estrutural do crescimento é redutora. E nesse contexto nada feito. Não há imaginação que compense essa limitação endémica.

Sem comentários:

Enviar um comentário