(Alexandra de Pinho, 2010: Narrativa de Fugas, tecidos, linhas de algodão e acrílico sobre tela, 160x160)
António José Seguro (AJS) dá alguns sinais de
querer acabar com o período de nojo do PS face ao seu compromisso de negociação
do memorando de resgate financeiro e procura desesperadamente alguma distância
face à gestão europeia e nacional da crise das dívidas soberanas. É tarefa
pesada e de alto risco. Por várias razões e todas de peso significativo.
Em primeiro lugar, a evolução das sondagens
evidencia que o português médio pressente que, apesar do caráter cada vez mais
autodestruidor da terapia de austeridade e da sua penosidade social, algo havia de
errado no rumo da economia portuguesa no período que pode ser associado aos
governos PS. A alternativa da saída do euro é também vista como algo
sensivelmente mais incerto e de efeitos mais devastadores do que a incerteza
atual, pelo que os discursos mais radicais também não conseguem capitalizar
capital eleitoral para incomodar a presente maioria.
Depois, a ascensão de AJS concretiza-se num
contexto de PS em que rostos relevantes (números 2 e não só) da governação
Sócrates se mantêm ativos e na boca de cena, o que pode ser compreensível numa
lógica de procura de alguma unidade interna, mas que fragiliza seriamente a
procura de distância face às condições que precederam a negociação do acordo
com a TROIKA.
Mais ainda, o silêncio ensurdecedor de AJS
durante o consulado Sócrates também não ajuda, por mais talentoso que alguém
seja em gerir o silêncio.
Mas a principal razão tem que ver, em minha
opinião, com o não exercício da crítica face à evolução da governação Sócrates,
sobretudo no seu segundo mandato. Não se trata de catarse gratuita ou de criar
condições para purgas internas com reflexos nos órgãos nacionais e na
composição do grupo parlamentar. Trata-se, simplesmente, de crítica e de avaliação
de experiência não só para memória futura, mas fundamentalmente para preparar
alternativas de intervenção na sociedade portuguesa. E não me digam que é
deselegante ou injusto fazê-lo com o anterior líder a reciclar ideias (oxalá
que não as baterias) na Sciences PO em Paris. Ora é aqui é que as narrativas
sobre o poder são cruciais para contextualizar as coisas. Mário Soares forneceu
alguns elementos sobre o período de antecâmara imediata do pedido de ajuda
externa. Há ainda elementos que falta sistematizar sobre os contactos de
Sócrates com a senhora Merkel e outros líderes europeus a propósito do PEC 4.
As memórias ou reflexões de Teixeira dos Santos sobre o segundo mandato serão
também decisivas para compreender a precipitação do rumo. Por isso há espaço
para muita narrativa e sem a sua incorporação numa discussão ampla e
consistente dificilmente AJS poderá alguma vez marcar a distância e preparar
uma alternativa, mesmo que alguma alteração da relação de forças na Europa o possa
ajudar.
Há elementos de crítica à evolução da
governação PS – Sócrates que não devem constituir tabu para discutir uma
alternativa de governação. Tenho pensamento sobre isso e coloco neste post
algumas dessas ideias.
Antes de mais, é difícil compreender como que
é uma governação passa, como a de Sócrates, de uma prática intervencionista e
anticíclica à defesa pura e dura de uma política de austeridade. Com a mesma
convicção, defendeu-se a boa prática de intervir, contrariando, as tendências recessivas
e depois, quase sem pestanejar, o seu contrário. Bem sei que o governo PS foi
atraiçoado em cheio pela própria inconsistência das orientações europeias, que
precocemente abandonaram a sua política contracíclica para se entregar
obedientemente no regaço do mito da austeridade expansionista. Mas
coloquemo-nos na perspetiva do cidadão médio com iliteracia económica. Como é
que ele reage a uma governação que afirma uma tese e o seu contrário com a
maior das convicções do mundo? Desconfia, naturalmente.
Depois, o governo PS é responsável
historicamente pela continuidade, para lá de um limiar aceitável, do modelo de
afetação de recursos da economia portuguesa que privilegiou até à exaustão a
produção de bens e serviços não transacionáveis (infraestruturas e outras
amenidades com ligação muito indireta e remota à competitividade da economia
portuguesa). Para mais, essa opção aconteceu quando o núcleo empresarial mais
representativo do país fazia o seu ajustamento aos novos rumos da globalização,
necessitando de apoio inequívoco nessa tarefa que as opções políticas
contrariaram. É nesta teimosia tardia que podemos encontrar as principais razões
para o incremento da dívida pública e da dívida externa do país, não compreendendo
o que estava a mudar na economia portuguesa.
Enquanto isto, a governação PS não foi capaz
de comunicar o seu contributo decisivo, através do universo das políticas
sociais, para a melhoria das condições de desigualdade social existentes no país,
conseguidas essencialmente devido à melhoria de situação dos 20% mais pobres. Embora
nada fazendo para contrariar a posição dos 10 ou 5% mais ricos, a melhoria
observada no indicador de desigualdade é obra que merecia ampla comunicação. Porém,
por mais paradoxal que possa parecer, foram esses 20% mais pobres que começaram
a ser atingidos pela inflexão das convicções da governação socialista.
Mas há outros aspetos que importa considerar:
- A voracidade de apresentação de resultados da Iniciativa das Novas Oportunidades (a batalha comunicacional dos indicadores estatísticos) comprometeu a sustentação da iniciativa, não compreendendo quão precoce era essa intenção sobretudo com a chegada à INO dos públicos mais difíceis;
- A política industrial e tecnológica perdeu orientação com a desvalorização que a unidade do Plano Tecnológico experimentou com a passagem de Carlos Zorrinho a Secretário de Estado da Energia, passando, pasme-se, a coordenação de um processo tão relevante como os clusters e pólos de competitividade a residir praticamente na Autoridade de Gestão do PO COMPETE;
- Simultaneamente, a errada perceção de que a mudança tecnológica da economia portuguesa realizaria por si só e em tempo record a mudança estrutural em curso da década de 2000-2010 só se compreende no âmbito de uma visão redutora da tecnologia, vista mais como gadget do que como impulso para uma mudança organizacional;
- A perspetiva punitiva e de isolamento perante a sociedade de alguns corpos da sociedade portuguesa (professores, juízes, principalmente estes) começou a imperar sem uma explicação acabada do porquê da imperiosa necessidade das mudanças impostas, cavando o isolamento político da governação face a corpos dinâmicos da sociedade;
- Ausência de seletividade na promoção de parcerias público-privadas, com alguma incapacidade de superar a inexperiência da governação nesse modelo de contratualização;
- Gestão desintegrada das áreas interiores do país, projetando nesses territórios o maior fardo das preocupações de eficiência.
Outros domínios haverá que justifiquem amplo
debate. A não resposta a estas situações explica, por exemplo, a incomodidade
de António Costa, ontem no Quadratura do Círculo, quando António Lobo Xavier
atacou a década de que estamos a falar. Insisto numa ideia já aqui desenvolvida
várias vezes. Uma década de crescimento anémico não é necessariamente uma década
perdida se corresponder a mudança estrutural do tecido produtivo prenunciadora
de resistência competitiva futura.
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