domingo, 13 de setembro de 2015

PODE A ECONOMIA ALGUMA VEZ SER BENCH SCIENCE?


 

Solow versus Lucas

(Um pouco técnico, mas talvez o debate de momento)

Apesar de ter intuído a sua relevância e ter-lhe dedicado neste blogue a devida atenção, nunca esperaria que o regresso empenhado e fortemente interventivo de Paul Romer (PR) às lides do debate macroeconómico provocaria a amplitude de repercussões que efetivamente provocou.

Sem ser maçador recordo as razões do regresso de PR ao debate com o seu artigo apresentado na reunião anual da American Economic Association, indiscutivelmente o maior encontro de ideias económicas a nível global. PR insurgia-se nesse artigo contra as em seu entender erradas aplicações da matemática em economia, o que é por si só uma forte curiosidade pois PR reclama-se da tese de que só uma economia matemática poderá aproximar-se das restantes ciências. Com o termo “mathiness”, PR pretendeu chamar a atenção para o facto da utilização da matemática poder ocultar vícios perigosos de interpretação da realidade. Ou seja, a invocação do rigor pode ocultar a falta do mesmo e, o que é mais grave, ocultar faltas de seriedade e condicionar a progressão do conhecimento em economia.

Aparentemente, a partir deste posicionamento não seria legítimo esperar os desenvolvimentos que o debate acabou por assumir, mais uma vez apontando para o que poderíamos chamar o cisma da ciência macroeconómica na segunda metade dos anos 70, também popularizado na oposição fresh versus saltwater economics. Foi o economista Robert Hall que em 1976 batizou este cisma, separando as águas entre os novos clássicos (freshwater) que emergiram a partir das universidades americanas implantadas em torno da região dos Grandes Lagos (Chicago, Rochester, Minneapolis, Carnegie Mellon e outras) e as que correspondiam então ao pensamento económico estabelecido (Harvard, MIT, Berkeley, Princeton, Columbia e outras) (saltwater).

O contágio do debate tem várias razões.

A primeira resulta indiscutivelmente do facto de PR quando cunhou o termo “mathiness” estar a pensar essencialmente em dois modelos de crescimento económico, em cuja maturação estiveram dois economistas fortemente representativos do movimento freshwater, Robert Lucas Jr. e Prescott, com o picante de Lucas ter sido o supervisor da tese de Romer que a concluiu precisamente em Chicago, nobel de economia, precisamente por ter sido um dos precursores do tal cisma e em parte também pelo seu modelo de crescimento com acumulação de capital humano. Há quem diga que já seria tempo da academia sueca reconhecer a PR um contributo idêntico ao de Lucas para a teoria do crescimento.

A segunda razão para o contágio do debate deve-se ao facto de PR sustentar que o cisma então produzido poderia ter sido evitado e com isso ter-se evitado todas as dificuldades de progressão do pensamento económico, que evoluiu para uma espécie de tribalismo com as estratégias de poder associadas. PR tem uma tese um pouco obtusa de que se o movimento saltwater tivesse reagido de outro modo e não tivesse projetado para o campo político as últimas intenções de Lucas, Sargeant e seus pares, teria sido possível em universidades como o MIT e Berkeley acolher as críticas dos novos clássicos e ter evitado a cisão irredutível. É que, convém não ignorar esse facto, os novos clássicos constroem um esquema de abordagem que procura demonstrar que, em última instância, a política económica, isto é, a intervenção do Estado na economia, ou é perniciosa ou inútil. E convém ainda não esquecer que as novas contribuições de Lucas para o crescimento económico que PR apelida de exemplo flagrante de mathiness procuram compatibilizar a economia das ideias com a economia de concorrência. Ora a economia das ideias de PR é, pelo contrário, a demonstração de que as ideias pertencem ao mundo da concorrência monopolista. Segundo PR ninguém de juízo médio assumirá a condução de uma ideia nova criadora de valor económico se a isso não corresponder um poder de mercado inicial (grau de monopólio), mesmo que a ideia possa ser replicada e suprimido esse poder de mercado.

É aqui que entra a distinção entre a bench science e a prática clínica. Se a economia fosse bench science então teria sido possível entre pares acolher e discutir as perspetivas dos novos clássicos e produzir um paradigma novo, sem cisma de posições irredutíveis. Mas como em economia a bench science e a prática clínica existem indissociavelmente então as posições de Lucas e seus pares condenando a política económica e orientando a produção teórica para uma rejeição da concorrência monopolista não puderam deixar de suscitar a resposta de que a freshwater economics estava do lado dos que negam a vantagem da política económica e da intervenção pública. O que teria inevitavelmente de suscitar a reação de economistas que estiveram sempre do lado do pensamento liberal e democrata americano.

Há uma terceira razão para o contágio do debate. A macroeconomia é naturalmente indissociável dos modelos macroeconométricos que são utilizados sobretudo por bancos centrais, mas também por entidades privadas, na realização de previsões macroeconómicas. Estes modelos equivalem de certo modo à prática clínica de que fala PR e, como é, compreensível, dificilmente podem manter-se afastados da dimensão da putativa bench science. Durante largo tempo, tais modelos foram dominados por uma síntese neo-keynesiana que incorporava alguns dos aspetos reivindicados pelos novos clássicos (freshwater economics). Uma das razões para o contágio do debate prende-se com o fogo a que estiveram sujeitos estes modelos nos últimos anos, após a revelação da sua incapacidade para prever os efeitos da turbulência financeira de 2007-2008 da qual a economia mundial parece ter dificuldades em libertar-se.

Neste contexto, e apesar da desesperada tentativa de PR para se situar num domínio similar ao da bench science das ciências com possível aplicação clínica, a macroeconomia parece condenada a ter de ser sempre equacionada em função da “sua” prática clínica.

Parece paradoxal mas o impacto que há quarenta anos atrás os novos clássicos tiveram quando provocaram o cisma da macroeconomia tinha precisamente em conta a relação entre a economia e a política económica. David Glasner, no sempre rigoroso Uneasy Money, tem um excelente texto sobre esse paradoxo. Na verdade, o abalo provocado pelas teses de Lucas e seus seguidores nos anos 70 partia da seguinte ideia básica. Os modelos macroeconómicos então existentes e com dificuldades para explicar a então chamada estagflação, ou seja a coexistência de níveis de desemprego e de inflação ambos elevados, partiam do pressuposto que os seus principais parâmetros eram imunes aos efeitos da política económica que preconizavam. Ora o que os novos clássicos demonstraram é que a política económica tendia a ser antecipada pelos agentes económicos, alterando as suas expectativas de modo tal que a constância dos parâmetros pressuposta pelos modelos macro era totalmente questionada, determinando que os parâmetros tendessem a divergir consideravelmente dos valores inicialmente estimados. O exemplo mais conhecido desta capacidade de antecipação dos agentes económicos é a da possível ineficácia de estímulos inflacionários para diminuir a taxa de desemprego, na justa medida em que os trabalhadores possam antecipar nos seus comportamentos a subida de preços.

O cisma que esta posição gerou foi provocado pelo facto dos novos clássicos, com Lucas à cabeça, passarem a desenvolver modelos com a incorporação de pressupostos microeconómicos, refletindo a dimensão intrínseca e profunda das preferências, tecnologia e restrições na utilização de recursos. Ou seja, modelos com agentes capazes de otimizar intertemporalmente as suas decisões, sendo dados um padrão imutável de preferências, uma tecnologia e um conjunto de restrições em termos de recursos. Ora, o cisma produz-se e, como Glasner devidamente assinala, sem que a nova abordagem esteja liberta de pressupostos muito condicionadores. O alcance da chamada crítica de Lucas é chamar a atenção para a possibilidade, real e não remota, das alterações de política económica alterarem os parâmetros que suportam o modelo no âmbito do qual a política é concebida. Correto. Mas isso poderia ter implicado uma larga revisão das condições em que as previsões macroeconómicas dos efeitos de políticas determinadas são fornecidos aos responsáveis pela sua decisão. Por exemplo, fornecendo resultados dentro de intervalos considerados seguros. Mas não foi isso que aconteceu. Quer isso significar que um vasto potencial de revisão dos modelos então disponíveis foi desperdiçado. O que Lucas provocou foi a abertura de um novo campo de pressupostos, julgados imunes às alterações de políticas. Pressupostos esses que apontando para o mundo da otimização intertemporal, por isso com um campo de informação perfeita sobre o futuro, que há que convir são mais obtusos em relação à realidade do que a constância de parâmetros que se pretendia combater.

PR interroga-se, algo academicamente, sobre o que terá levado alguns representantes da saltwater economics, como o Solow, a reagir tão violentamente contra os novos pressupostos de Lucas e seus seguidores e com tal reação a conduzir estes últimos ao desenvolvimento de uma tribo. É puro academismo discutir se Lucas e seus seguidores teriam seguido uma orientação mais tribal se no MIT Solow e outros economistas tivessem sido mais compreensivos para com a crítica demolidora de Lucas sobre a inutilidade ou ineficácia da política económica. Tenho a intuição de que a crítica demolidora de Lucas tem já na sua natureza intrínseca a vontade de uma nova tribo entre os economistas. Temos evidências de como a maneira como alguma desta tribo reagiu às evidências de 2007-2008 é bem sintomática de crenças mais profundas e idiossincráticas.
Tudo isto mostra que António Costa e o seu grupo mais restrito teriam vantagem em não absolutizar tanto a sua crença nos modelos que suportam os documentos que tanto gostam de acenar para reforçar a credibilidade das suas propostas. Por sorte, a maioria resolveu estar igual a si própria e não contrapor com modelos tão ou mais sofisticados. Poderia ter acontecido.

E chego finalmente à mensagem principal deste já longo post. A economia dificilmente poder ser acomodada e comparada aos domínios da bench science. Está condenada a interagir com a “prática clínica” e daí estar para a bench science como o artesanato está para a manufatura. Dani Rodrik pensa bem quando sustenta que “o mundo social difere do mundo da física porque é feito pelo homem e por isso quase infinitamente maleável. Assim, ao contrário das ciências naturais, a economia avança cientificamente não substituindo velhos por melhores modelos, mas alargando a sua bateria de modelos, em que cada um fornece uma luz para uma diferente contingência social”. O que transforma os economistas, sobretudo os que estão condenados a ter prática clínica, em navegadores que buscarão os melhores mapas (modelos) para interpretar e transformar a realidade.

Mas é revigorante pensar que muito desta discussão acontece apenas porque PR resolveu sair da concha e intervir na reunião anual da American Economic Association. E estou-me nas tintas para qual o motivo que o levou a morder as canelas do seu antigo supervisor. É esta garantia de liberdade científica para morder as canelas dos que controlam a evolução do pensamento económico que é necessário preservar. A bem da progressão das ideias, mesmo que a economia não possa aspirar à força expressiva da bench science, por muito que custe ao próprio PR.

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