quinta-feira, 24 de setembro de 2015

A DIMENSÃO IMPERDOÁVEL DO ERRO




(Agora Inês é morta, ou seja, os efeitos da austeridade já se produziram, mas ainda assim é importante quantificá-los …)

Todos conhecem a história, até porque nos bateu no lombo. A União Europeia estava em 2010 ainda a recuperar dos efeitos produzidos pela crise financeira com epicentro nos EUA, depois de em 2009 ter iniciado e logo concluído uma intervenção contracíclica na economia, designadamente através dos Fundos Estruturais. Ou seja, em 2010 a recuperação das economias da UE estava longe de estar consolidada. Pois ainda assim, entre 2011 e 2013, a UE iniciou um período de política económica restritiva, pretensamente justificada pela gestão da dívida pública e pressionada pelo que ficará na história como a crise das dívidas soberanas. Estimativas publicadas pela própria Comissão Europeia quantificam essa política restritiva em 4% do PIB da zona euro, o que significa que a austeridade pegou fundo.

Olivier Blanchard, ainda como economista-chefe do FMI, e outros economistas destas instituições vieram corajosamente a terreiro mostrar que as autoridades representadas nas Troikas, ou seja incluindo o próprio FMI, subavaliaram a dimensão dos multiplicadores de despesa (descendentes neste caso) provocados pela onda austeritária e todos nos lembramos ainda da perplexidade com que o nosso Vítor Gaspar (agora no regaço do próprio FMI) apresentava os resultados depressivos dessas medidas. Teoricamente sabemos que o otimismo expansionista com que alguns economistas encaravam os efeitos da austeridade estão baseados num princípio macroeconómico praticamente impossível de confirmar a sua existência empírica. O princípio ainda remonta a Ricardo e chama-se pomposamente princípio da equivalência ricardiana. Em termos simples, a equivalência ricardiana pressupõe que as famílias, interpretando as políticas de austeridade como permanentes, vão antecipar os efeitos positivos que irão provocar na consolidação das contas públicas, consumindo e investindo hoje por conta da melhoria das contas públicas amanhã (descida de impostos no futuro). Os resquícios da austeridade expansionista são hoje arqueológicos e a tais políticas restam ou a fé ou o implacável desejo de punição dos infratores.


O IMK, Institut für Makroӧkonomie undKonjunkturforschung (Macroeconomic Policy Institute), um think-tank alemão, publicou em Agosto de 2015 um trabalho de três economistas, Ansgar Rannenberg (Central Bank of Ireland), Christian Schoder (Universidade de Viena) e Jan Strásky (OCDE) que quantifica os efeitos macroeconómicos da desproporcionada e não atempada consolidação de contas públicas entre 2011 e 2013. Bom, mais um estudo na linha do de Blanchard para o FMI, podem dizer-me. Não creio que se trate de mais um estudo. É que os três economistas utilizam como ferramenta de simulação e quantificação nada mais nada menos do que dois modelos que são precisamente os modelos utilizados pelo BCE e pela Comissão Europeia para os seus trabalhos macroeconómicos. Os modelos são o New Area Wide Model (do BCE) e o QUEST III (da Comissão Europeia), dois modelos DGSE (Dynamic General Stochastic Equilibrium) tão em discussão nos últimos tempos. O que os três economistas nos mostram é que recorrendo a tais modelos os efeitos perniciosos da consolidação fiscal abrupta poderiam ter sido antecipados pelas instituições europeias, acaso o pretendessem. Admitindo simplesmente que as medidas de austeridade tiveram um grau de persistência elevado (3 anos) mas não foram percecionadas pelos agentes económicos como permanentes e acrescentando-lhe um acelerador financeiro e um parâmetro que mede as complicações da restrição orçamental das famílias, o trabalho dos três economistas conclui inequivocamente pelo elevado contributo da consolidação para a crise recessiva de produto que a UE experimentou. Os multiplicadores descendentes de despesa encontrados nos dois modelos foram de 0,7 e 1,0, respetivamente, aumentando cumulativamente para 1,3 no caso da integração dos dois parâmetros adicionais atrás referidos (acelerador financeiro e restrição orçamental das famílias). 80% da queda do produto da UE neste período é explicado pela consolidação fiscal abrupta e o que é mais importante nessa situação o rácio “Dívida Pública/PIB” tende por 4 a 5 anos a aumentar em relação ao valor que apresentava antes da consolidação fiscal abrupta e desproporcionada.

Ou seja não façam de nós anjinhos ou parvos. A Comissão Europeia dispunha de elementos credíveis para antecipar os efeitos desastrosos de tal consolidação fora de tempo ou no tempo errado. Não sem surpresa, os autores concluem que teria sido possível evitar custos de queda de produto tão salientes da consolidação fiscal, acaso tivesse sido tida em conta a limitação que a restrição do zero lower bound estava a determinar para a economia global. Por outras palavras, nem havia fundamentação credível pela positiva de tais medidas, nem estavam ausentes instrumentos capazes de antecipar os seus efeitos desastrosos. A consolidação fiscal abrupta, sobretudo depois de a Comissão Europeia ter aderido episodicamente ao intervencionismo contracíclico em 2009, comunicado ao governo português de então como necessário, foi um puro capricho ideológico. Ficará certamente na história como uma das mais incompreensíveis decisões de política macroeconómica global de que haverá memória nos próximos tempos. Compreender por que razão, neste contexto, o centro-esquerda /social-democracia europeia não foram capazes de o denunciar atempadamente é um grande mistério. No meu entender, só possível por razões da mais pura cumplicidade. Este fim-de-semana Wolfgang Münchau escreveu no Financial Times um contundente artigo (que pode ver aqui) sobre a inépcia do centro-esquerda. Interroga-se Münchau como é que é possível o centro-esquerda não capitalizar as diatribes do centro-direita. Para mim a resposta é simples. Apenas por cumplicidade, tão só cumplicidade. Pronunciou-se atempadamente o centro-esquerda relativamente à desregulação financeira para além de todos os limites decentes? Esteve o centro-esquerda atento à economia que foi criticando esse processo? Não, o centro-esquerda redescobria o mercado e o new public management.

Também por estes motivos, ou seja pagando fatura pelos erros do pensamento político em que se inserem, embora críticos do mesmo, o PS e António Costa penam numa campanha eleitoral, sendo levados para um tom de campanha que certamente não desejariam.

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