(Agora Inês
é morta, ou seja, os efeitos da austeridade já se produziram, mas ainda assim é
importante quantificá-los …)
Todos conhecem a história, até porque nos bateu no lombo. A União Europeia
estava em 2010 ainda a recuperar dos efeitos produzidos pela crise financeira
com epicentro nos EUA, depois de em 2009 ter iniciado e logo concluído uma
intervenção contracíclica na economia, designadamente através dos Fundos
Estruturais. Ou seja, em 2010 a recuperação das economias da UE estava longe de
estar consolidada. Pois ainda assim, entre 2011 e 2013, a UE iniciou um período
de política económica restritiva, pretensamente justificada pela gestão da
dívida pública e pressionada pelo que ficará na história como a crise das
dívidas soberanas. Estimativas publicadas pela própria Comissão Europeia
quantificam essa política restritiva em 4% do PIB da zona euro, o que significa
que a austeridade pegou fundo.
Olivier Blanchard, ainda como economista-chefe do FMI, e outros economistas
destas instituições vieram corajosamente a terreiro mostrar que as autoridades
representadas nas Troikas, ou seja incluindo o próprio FMI, subavaliaram a
dimensão dos multiplicadores de despesa (descendentes neste caso) provocados
pela onda austeritária e todos nos lembramos ainda da perplexidade com que o
nosso Vítor Gaspar (agora no regaço do próprio FMI) apresentava os resultados
depressivos dessas medidas. Teoricamente sabemos que o otimismo
expansionista com que alguns economistas encaravam os efeitos da austeridade
estão baseados num princípio macroeconómico praticamente impossível de confirmar
a sua existência empírica. O princípio ainda remonta a Ricardo e chama-se
pomposamente princípio da equivalência ricardiana. Em termos simples, a
equivalência ricardiana pressupõe que as famílias, interpretando as políticas
de austeridade como permanentes, vão antecipar os efeitos positivos que irão provocar na consolidação das contas públicas, consumindo e
investindo hoje por conta da melhoria das contas públicas amanhã (descida de
impostos no futuro). Os resquícios da austeridade expansionista são hoje
arqueológicos e a tais políticas restam ou a fé ou o implacável
desejo de punição dos infratores.
O IMK, Institut für Makroӧkonomie undKonjunkturforschung (Macroeconomic
Policy Institute), um think-tank
alemão, publicou em Agosto de 2015 um trabalho de três economistas, Ansgar
Rannenberg (Central Bank of Ireland), Christian Schoder (Universidade de Viena)
e Jan Strásky (OCDE) que quantifica os efeitos macroeconómicos da
desproporcionada e não atempada consolidação de contas públicas entre 2011 e
2013. Bom, mais um estudo na linha do de Blanchard para o FMI, podem dizer-me.
Não creio que se trate de mais um estudo. É que os três economistas utilizam
como ferramenta de simulação e quantificação nada mais nada menos do que dois
modelos que são precisamente os modelos utilizados pelo BCE e pela Comissão
Europeia para os seus trabalhos macroeconómicos. Os modelos são o New Area Wide Model (do BCE) e o QUEST III (da Comissão Europeia), dois modelos DGSE (Dynamic General Stochastic Equilibrium)
tão em discussão nos últimos tempos. O que os três economistas nos mostram é
que recorrendo a tais modelos os efeitos perniciosos da consolidação fiscal
abrupta poderiam ter sido antecipados pelas instituições europeias, acaso o
pretendessem. Admitindo simplesmente que as medidas de austeridade tiveram um
grau de persistência elevado (3 anos) mas não foram percecionadas pelos agentes
económicos como permanentes e acrescentando-lhe um acelerador financeiro e um
parâmetro que mede as complicações da restrição orçamental das famílias, o
trabalho dos três economistas conclui inequivocamente pelo elevado contributo
da consolidação para a crise recessiva de produto que a UE experimentou. Os
multiplicadores descendentes de despesa encontrados nos dois modelos foram de
0,7 e 1,0, respetivamente, aumentando cumulativamente para 1,3 no caso da
integração dos dois parâmetros adicionais atrás referidos (acelerador
financeiro e restrição orçamental das famílias). 80% da queda do produto da UE
neste período é explicado pela consolidação fiscal abrupta e o que é mais
importante nessa situação o rácio “Dívida Pública/PIB” tende por 4 a 5 anos a
aumentar em relação ao valor que apresentava antes da consolidação fiscal
abrupta e desproporcionada.
Ou seja não façam de nós anjinhos ou parvos. A Comissão Europeia dispunha
de elementos credíveis para antecipar os efeitos desastrosos de tal
consolidação fora de tempo ou no tempo errado. Não sem surpresa, os autores
concluem que teria sido possível evitar custos de queda de produto tão
salientes da consolidação fiscal, acaso tivesse sido tida em conta a limitação
que a restrição do zero lower bound
estava a determinar para a economia global. Por outras palavras, nem havia
fundamentação credível pela positiva de tais medidas, nem estavam ausentes
instrumentos capazes de antecipar os seus efeitos desastrosos. A consolidação
fiscal abrupta, sobretudo depois de a Comissão Europeia ter aderido
episodicamente ao intervencionismo contracíclico em 2009, comunicado ao governo
português de então como necessário, foi um puro capricho ideológico. Ficará
certamente na história como uma das mais incompreensíveis decisões de política
macroeconómica global de que haverá memória nos próximos tempos. Compreender
por que razão, neste contexto, o centro-esquerda /social-democracia europeia
não foram capazes de o denunciar atempadamente é um grande mistério. No meu
entender, só possível por razões da mais pura cumplicidade. Este fim-de-semana
Wolfgang Münchau escreveu no Financial Times um contundente artigo (que pode
ver aqui) sobre a inépcia do centro-esquerda. Interroga-se Münchau como é que é
possível o centro-esquerda não capitalizar as diatribes do centro-direita. Para
mim a resposta é simples. Apenas por cumplicidade, tão só cumplicidade.
Pronunciou-se atempadamente o centro-esquerda relativamente à desregulação
financeira para além de todos os limites decentes? Esteve o centro-esquerda
atento à economia que foi criticando esse processo? Não, o centro-esquerda
redescobria o mercado e o new public
management.
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