sexta-feira, 25 de setembro de 2015

PRELIMINARES ELEITORAIS VIII




(A arte da ocultação, questões de polarização e a inexistência de uma convergência mínima de esquerda que respeite e integre as incontornáveis diferenças …)

O Quadratura do Círculo de ontem foi mais relevante pelo que foi sugerido e ficou por discutir do que propriamente pelo que foi dito. Aliás foi evidente como os três intervenientes estão já contagiados pelos presságios que vão emergindo para o dia 4 de outubro: o desencanto de Pacheco Pereira com a incompetência da campanha do PS, ele (PP) que simboliza uma das mais cristalinas oposições a este governo e às suas perversidades, é evidente; Jorge Coelho parece querer dizer se fosse comigo ia tudo a eito, o PS entrava na linha e o ajuste de contas era uma realidade e António Lobo Xavier goza declaradamente com a situação, cavalgando a sua ideia de que a maioria trabalhou bem a inexistência de uma massa ululante de penalizados pela austeridade, tendo aprendido com o primeiro desvario da TSU.

Compreendo bem a amargura do meu colega de blogue com o clima insuportável de ocultação das perversidades e de maldades com que a maioria presenteou uma larga maioria dos portugueses, perversidades e maldades essas que o Tribunal Constitucional e a Constituição evitaram que fossem bem piores. Podemos falar talvez de uma técnica esmerada de ocultação (técnica e não arte já que a maioria é pouco propensa a essas coisas), que é sempre mais fácil quando se detém as rédeas do poder. Já aqui escrevi várias vezes que as políticas de austeridade são perversas. Pois tamanha é a penosidade que transportam consigo que, quando são aligeiradas, como a maioria o fez em 2014, tendem a provocar uma progressiva ideia de alívio que acaba por contribuir para a memória curta dos efeitos da austeridade. Não me canso de o dizer, pois a sua compreensão estava ao alcance de todos e a equipa de entorno de António Costa poderia tê-lo perfeitamente antecipado. Os conservadores de Cameron fizeram esse alívio, potenciaram com isso a recuperação normal de ciclo económico e foi o que se viu, ganharam as eleições a uns desajeitados, decrépitos e cúmplices trabalhistas que, não esqueçamos, puseram-se a jeito. Sim, de facto, há ocultação e da mais primária e entre ela a que mais enoja é aquela pose de pseudo homem de Estado de Paulo Portas, mais do que a de Passos Coelho. Mas, em meu entender, a maneira primária como a ocultação tem sido acolhida só é possível devido à incapacidade de polarização que o PS revelou ao longo de todo este tempo.

Tenho de reconhecer que o PS nunca polarizou verdadeiramente a insatisfação. O PS foi e tem sido mais um partido consentido na manifestação de um desagrado do que propriamente um dinamizador organizativo dessa mesma insatisfação. O problema começou com António José Seguro (AJS) quando hesitou entre a postura de cooperação institucional e a de protagonista liderante da insatisfação polarizadora. Lamento dizê-lo mas não são compatíveis. Já não falando no beneplácito que Seguro deu ao tratado orçamental, fruto desse desejo profundo de cooperação institucional, quando associou o PS à revisão do IRC, reduzindo-o, AJS estava a traçar um rumo político que o teria conduzido a um acordo pós eleitoral de 4 de outubro, acaso tivesse permanecido à frente do PS. Enquanto medida isolada, sou dos que penso que a fiscalidade empresarial deve ser ponderada, pois o contexto europeu é desfavorável a Portugal. Mas uma coisa é incluir essa medida num programa alternativo de governação, outra bem diferente é cooperar com um adversário de cujas perversidades pretendo ser a força política denunciadora e polarizadora do descontentamento que geraram. AJS tinha esse modelo de governação para o PS. Não o apoiei, porque me parece que essa postura conduziria o PS ao fracasso e impotência diferenciadora do centro-esquerda europeu que Münchau tão bem critica na sua última crónica. AJS perdeu a liderança do PS mas deixou marcas e a sua saída desagradou a um certo meio empresarial identificado com a Opus Dei e com o centrão político português.

As marcas que a saída de Seguro deixou para trás foram substancialmente ampliadas pelo desaparecimento a que António Costa se entregou, primeiro até assumir de facto a liderança do PS e depois enquanto decidiu não se pronunciar sobre muita coisa, enquanto preparava o seu séquito de documentos e agendas estratégicas. No primeiro período, tivemos a vozinha da Barbie Belém a ocupar o espaço e sabemos quão polarizadora é essa figura. No segundo período, Costa jogou o gato e o rato com os jornalistas, esquivando-se e usando o Quadratura do Círculo como se este fosse de largo espectro. A ida de Porfírio Silva a este programa foi para mim muito elucidativa. O PS trabalhava focus group com grupos particulares e preparava uma imagem de António Costa não radical, para não ofender as características mais profundas do eleitorado médio português. Ora, uma polarização como aquela que Pacheco Pereira imaginaria não se constrói de um momento para o outro, sobretudo depois de um consulado Seguro e de um longo período de inação política, mesmo que determinada pela boa ação de construir um quadro estratégico credível e consistente de governação.

Robert Reich, economista e professor de Política Pública em Berkeley, já traduzido em Portugal, escrevia a 23 de setembro no The Chronicle Review do sempre recomendável The Chronicle of Higher Education que “a economia é demasiado importante para ser deixada aos economistas”. Não poderia estar mais de acordo. António Costa quis ganhar consistência de governação apoiando-se num documento estratégico e de programação que o defendesse junto nomeadamente de credores e instituições internacionais. Acho que pensou e fez bem. Mas não com o preço de perder a capacidade de polarização que a eleição de 4 de outubro de 2015 exigiria. O timing de produção e aparecimento dos documentos em causa acabaram por ter um efeito muito penalizador na formação de uma capacidade de polarização da esquerda insatisfeita que procurava, na linguagem de Jorge Coelho, um ajuste de contas.

Receio que o tempo da campanha eleitoral seja curto para conseguir obter essa polarização que deveria ter sido construída desde o consulado de Seguro e não agora in extremis, como se tivéssemos adormecido ao longo do jogo e o quiséssemos ganhar nos últimos cinco minutos e descontos. Claro que a inexistência de uma convergência mínima à esquerda agrava as dificuldades. Bem sei também que é mais fácil a um partido de protesto polarizar do que a um outro que pretende assumir uma governação alternativa. Mas nem isso se nota, pois CDU e Bloco de Esquerda oscilam bastante entre si, mas globalmente, embora concentrem uma percentagem de voto que daria a vitória ao PS, não têm um crescimento visível.

É óbvio que a estratificação usada na maioria das sondagens, que é feita à região NUTS II mas que não reproduz a importância dos grandes círculos eleitorais, pode não estar a antecipar claramente o universo eleitoral. E resta o universo dos indecisos, mas não há, que conheça, estudos eleitorais que diferenciem nestes indecisos entre os que já romperam com o sistema e já não votam e os que podem ser ainda mobilizados para ir votar. Mas é um tiro no escuto acreditar que essa mobilização eventual se faria em proveito exclusivo da esquerda e particularmente do PS. É muita gente e pode influenciar os resultados.

No trabalho em que participo, dirigido pela colega Pilar González e com a participação do Luís Delfim Santos e do meu filho Hugo Figueiredo, para a ILO de Genebra, os resultados da análise do modo como foram impactados os grupos de rendimento em Portugal pelo período de austeridade fizeram-me intuir algumas preocupações eleitorais. Não temos, é certo, uma rigorosa avaliação da equivalência entre grupos de rendimento e grupos sociais na sociedade portuguesa. Imaginaria eu, por exemplo, que pertenceria a uma classe média alta, com uma reforma modesta da Universidade e um salário privado envergonhado de CEO de empresa de consultadoria de pequena dimensão. Mas não. Quando tomei contacto com os dados da distribuição dos salários de trabalhadores por conta de outrem, apercebi-me rapidamente que um casal de professores universitários estará seguramente acima do percentil 97º da distribuição monótona ascendente dos rendimentos do trabalho. Ora, o que os nossos resultados deram foi que os grupos de rendimento (não apenas salários, mas rendimento global da família) mais baixos (por exemplo os que apresentam menos de 60% do rendimento mediano) e mais altos (acima dos 200% do rendimento mediano) foram significativamente mais impactados (mais os pobres do que os ricos) do que os grupos de rendimento intermédio, imperfeitamente associados às classes médias, nos dois primeiros anos da austeridade. Mas todos foram significativamente impactados. Esta informação vale o que vale, mas pode e deve ser aprofundada para tentarmos perceber os traços mais profundos da reação portuguesa à austeridade.

Estes dias serão de encruzilhada difícil para o PS em clima de radicalização de discurso em campanha. O “day after” de um 4 de outubro em que a coligação de direita seja eventualmente a força política mais votada (sem maioria absoluta? com maioria absoluta, cruzes credo?) vai fazer estalar as contradições entre o PS da cooperação institucional e do bloco central (nunca ensaiado com um PSD deste calibre) e o PS que ainda aspira a liderar a polarização de esquerda. Oxalá estejamos perante um cenário académico. Porque se o não for, este PS não será mais o mesmo.

Sem comentários:

Enviar um comentário