(A arte da
ocultação, questões de polarização e a inexistência de uma convergência mínima
de esquerda que respeite e integre as incontornáveis diferenças …)
O Quadratura do Círculo de ontem foi mais relevante pelo que foi sugerido e
ficou por discutir do que propriamente pelo que foi dito. Aliás foi evidente
como os três intervenientes estão já contagiados pelos presságios que vão
emergindo para o dia 4 de outubro: o desencanto de Pacheco Pereira com a
incompetência da campanha do PS, ele (PP) que simboliza uma das mais
cristalinas oposições a este governo e às suas perversidades, é evidente; Jorge
Coelho parece querer dizer se fosse comigo ia tudo a eito, o PS entrava na
linha e o ajuste de contas era uma realidade e António Lobo Xavier goza
declaradamente com a situação, cavalgando a sua ideia de que a maioria
trabalhou bem a inexistência de uma massa ululante de penalizados pela
austeridade, tendo aprendido com o primeiro desvario da TSU.
Compreendo bem a amargura do meu colega de blogue com o clima insuportável
de ocultação das perversidades e de maldades com que a maioria presenteou uma
larga maioria dos portugueses, perversidades e maldades essas que o Tribunal
Constitucional e a Constituição evitaram que fossem bem piores. Podemos falar
talvez de uma técnica esmerada de ocultação (técnica e não arte já que a
maioria é pouco propensa a essas coisas), que é sempre mais fácil quando se
detém as rédeas do poder. Já aqui escrevi várias vezes que as políticas de austeridade
são perversas. Pois tamanha é a penosidade que transportam consigo que, quando
são aligeiradas, como a maioria o fez em 2014, tendem a provocar uma
progressiva ideia de alívio que acaba por contribuir para a memória curta dos
efeitos da austeridade. Não me canso de o dizer, pois a sua compreensão estava
ao alcance de todos e a equipa de entorno de António Costa poderia tê-lo
perfeitamente antecipado. Os conservadores de Cameron fizeram esse alívio,
potenciaram com isso a recuperação normal de ciclo económico e foi o que se
viu, ganharam as eleições a uns desajeitados, decrépitos e cúmplices
trabalhistas que, não esqueçamos, puseram-se a jeito. Sim, de facto, há
ocultação e da mais primária e entre ela a que mais enoja é aquela pose de
pseudo homem de Estado de Paulo Portas, mais do que a de Passos Coelho. Mas, em
meu entender, a maneira primária como a ocultação tem sido acolhida só é
possível devido à incapacidade de polarização que o PS revelou ao longo de todo
este tempo.
Tenho de reconhecer que o PS nunca polarizou verdadeiramente a
insatisfação. O PS foi e tem sido mais um partido consentido na manifestação de
um desagrado do que propriamente um dinamizador organizativo dessa mesma
insatisfação. O problema começou com António José Seguro (AJS) quando hesitou
entre a postura de cooperação institucional e a de protagonista liderante da
insatisfação polarizadora. Lamento dizê-lo mas não são compatíveis. Já não
falando no beneplácito que Seguro deu ao tratado orçamental, fruto desse desejo
profundo de cooperação institucional, quando associou o PS à revisão do IRC,
reduzindo-o, AJS estava a traçar um rumo político que o teria conduzido a um
acordo pós eleitoral de 4 de outubro, acaso tivesse permanecido à frente do PS.
Enquanto medida isolada, sou dos que penso que a fiscalidade empresarial deve
ser ponderada, pois o contexto europeu é desfavorável a Portugal. Mas uma coisa
é incluir essa medida num programa alternativo de governação, outra bem
diferente é cooperar com um adversário de cujas perversidades pretendo ser a
força política denunciadora e polarizadora do descontentamento que geraram. AJS
tinha esse modelo de governação para o PS. Não o apoiei, porque me parece que
essa postura conduziria o PS ao fracasso e impotência diferenciadora do centro-esquerda
europeu que Münchau tão bem critica na sua última crónica. AJS perdeu a
liderança do PS mas deixou marcas e a sua saída desagradou a um certo meio
empresarial identificado com a Opus Dei e com o centrão político português.
As marcas que a saída de Seguro deixou para trás foram substancialmente
ampliadas pelo desaparecimento a que António Costa se entregou, primeiro até
assumir de facto a liderança do PS e depois enquanto decidiu não se pronunciar
sobre muita coisa, enquanto preparava o seu séquito de documentos e agendas
estratégicas. No primeiro período, tivemos a vozinha da Barbie Belém a ocupar o
espaço e sabemos quão polarizadora é essa figura. No segundo período, Costa
jogou o gato e o rato com os jornalistas, esquivando-se e usando o Quadratura
do Círculo como se este fosse de largo espectro. A ida de Porfírio Silva a este
programa foi para mim muito elucidativa. O PS trabalhava focus group com grupos particulares e preparava uma imagem de
António Costa não radical, para não ofender as características mais profundas
do eleitorado médio português. Ora, uma polarização como aquela que Pacheco
Pereira imaginaria não se constrói de um momento para o outro, sobretudo depois
de um consulado Seguro e de um longo período de inação política, mesmo que determinada
pela boa ação de construir um quadro estratégico credível e consistente de
governação.
Robert Reich, economista e professor de Política Pública em Berkeley, já
traduzido em Portugal, escrevia a 23 de setembro no The Chronicle Review do sempre
recomendável The Chronicle of Higher Education que
“a economia é demasiado importante para ser deixada aos economistas”. Não
poderia estar mais de acordo. António Costa quis ganhar consistência de
governação apoiando-se num documento estratégico e de programação que o
defendesse junto nomeadamente de credores e instituições internacionais. Acho
que pensou e fez bem. Mas não com o preço de perder a capacidade de polarização
que a eleição de 4 de outubro de 2015 exigiria. O timing de produção e aparecimento dos documentos em causa acabaram
por ter um efeito muito penalizador na formação de uma capacidade de
polarização da esquerda insatisfeita que procurava, na linguagem de Jorge
Coelho, um ajuste de contas.
Receio que o tempo da campanha eleitoral seja curto para conseguir obter
essa polarização que deveria ter sido construída desde o consulado de Seguro e
não agora in extremis, como se
tivéssemos adormecido ao longo do jogo e o quiséssemos ganhar nos últimos cinco
minutos e descontos. Claro que a inexistência de uma convergência mínima à
esquerda agrava as dificuldades. Bem sei também que é mais fácil a um partido
de protesto polarizar do que a um outro que pretende assumir uma governação
alternativa. Mas nem isso se nota, pois CDU e Bloco de Esquerda oscilam
bastante entre si, mas globalmente, embora concentrem uma percentagem de voto
que daria a vitória ao PS, não têm um crescimento visível.
É óbvio que a estratificação usada na maioria das sondagens, que é feita à
região NUTS II mas que não reproduz a importância dos grandes círculos
eleitorais, pode não estar a antecipar claramente o universo eleitoral. E resta
o universo dos indecisos, mas não há, que conheça, estudos eleitorais que
diferenciem nestes indecisos entre os que já romperam com o sistema e já não
votam e os que podem ser ainda mobilizados para ir votar. Mas é um tiro no
escuto acreditar que essa mobilização eventual se faria em proveito exclusivo
da esquerda e particularmente do PS. É muita gente e pode influenciar os
resultados.
No trabalho em que participo, dirigido pela colega Pilar González e com a
participação do Luís Delfim Santos e do meu filho Hugo Figueiredo, para a ILO
de Genebra, os resultados da análise do modo como foram impactados os grupos de
rendimento em Portugal pelo período de austeridade fizeram-me intuir algumas
preocupações eleitorais. Não temos, é certo, uma rigorosa avaliação da
equivalência entre grupos de rendimento e grupos sociais na sociedade
portuguesa. Imaginaria eu, por exemplo, que pertenceria a uma classe média
alta, com uma reforma modesta da Universidade e um salário privado envergonhado
de CEO de empresa de consultadoria de pequena dimensão. Mas não. Quando tomei
contacto com os dados da distribuição dos salários de trabalhadores por conta
de outrem, apercebi-me rapidamente que um casal de professores universitários
estará seguramente acima do percentil 97º da distribuição monótona ascendente
dos rendimentos do trabalho. Ora, o que os nossos resultados deram foi que os
grupos de rendimento (não apenas salários, mas rendimento global da família)
mais baixos (por exemplo os que apresentam menos de 60% do rendimento mediano)
e mais altos (acima dos 200% do rendimento mediano) foram significativamente
mais impactados (mais os pobres do que os ricos) do que os grupos de rendimento
intermédio, imperfeitamente associados às classes médias, nos dois primeiros
anos da austeridade. Mas todos foram significativamente impactados. Esta
informação vale o que vale, mas pode e deve ser aprofundada para tentarmos
perceber os traços mais profundos da reação portuguesa à austeridade.
Estes dias serão de encruzilhada difícil para o PS em clima de
radicalização de discurso em campanha. O “day
after” de um 4 de outubro em que a coligação de direita seja eventualmente
a força política mais votada (sem maioria absoluta? com maioria absoluta,
cruzes credo?) vai fazer estalar as contradições entre o
PS da cooperação institucional e do bloco central (nunca ensaiado com um PSD
deste calibre) e o PS que ainda aspira a liderar a polarização de esquerda.
Oxalá estejamos perante um cenário académico. Porque se o não for, este PS não
será mais o mesmo.
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