terça-feira, 8 de setembro de 2015

QUESTÕES MORAIS DO CAPITALISMO




(Reflexões suscitadas por dois artigos recentes de Robert Reich que me levaram aos anos 70 e a uma obra fundadora de parte do meu pensamento sobre a relação entre as questões sociais e a economia)

Creio que no início da década de 80 apresentei em Lisboa numa conferência sobre economia portuguesa do CISEP, então fortemente dinamizada pela força do pensamento da Professora Manuela Silva, com a qual me recordo de ter discutido o tema, um texto centrado no que então designava de degenerescência da base moral da economia portuguesa. Talvez na época ainda sem a maturidade suficiente para trabalhar plenamente a Teoria dos Sentimentos Morais de Adam Smith, recordo-me que devo ter sido dos primeiros a ler em contraponto a Riqueza das Nações e essa outra obra então pouco referida em Portugal de Adam Smith. Recordo-me que, na altura, para além desse confronto dos dois Adam Smith, fazia também ampla referência a uma obra que me tinha marcado profundamente no fim da década de 70, Os Limites Sociais do Crescimento, de Fred Hirsch, autor americano que haveria de desaparecer prematuramente ainda nessa mesma década de 70. Curiosamente, só em 2005, apanhei em Portugal um trabalho de investigação sobre a obra de Fred Hirsch, mais propriamente o working paper do DINÂMIA, de autoria de João Rodrigues e Luís Francisco Carvalho, o primeiro um economista que emergiria mais tarde na FE de Coimbra e no Bloco de Esquerda. O artigo chamava-se “The Continuing Relevance of Fred Hirsch’s Insights on Markets and Morality”. Isto para vos dizer que o tema não me é estranho há já muito tempo.

Pois estamos em tempos em que nunca como hoje a base moral do capitalismo foi tão discutida e questionada. Temos evidências de que a crise financeira foi o resultado de puros comportamentos de “greed” (ganância). Temos também evidência de que o crescimento da desigualdade nas economias maduras é em grande parte o resultado da degenerescência da base moral que atravessa os mercados e sobretudo dos muito suspeitos sistemas de fixação de remunerações. À nossa pequenina escala os casos da PT e do BES constituíram antros de proliferação desses fenómenos de degenerescência moral que, mais tarde ou mais tarde, se abatem sobre os próprios mercados corroendo a confiança entre os seus principais protagonistas e intervenientes.

Ora, tendo como pano de fundo a economia americana, sempre à frente nestas coisas da heterodoxia, Robert Reich publicou a 4 e a 7 de setembro dois excelentes textos sobre a questão da moralidade no capitalismo. O primeiro chama-se sugestivamente “O que é que aconteceu ao centro moral do capitalismo americano?”. Reich utiliza sobretudo o número dos CEO das grandes empresas ganharem presentemente salários e remunerações 300 vezes os salários médios dos trabalhadores, intervindo no jogo em proveito próprio com a cumplicidade de acionistas, comprados por algumas bagatelas e jogadas mais complexas em torno das suas ações: o 1% mais rico recebe mais de 20% do rendimento e detém pelo menos 38% da riqueza, sendo possível concluir que 400 pessoas nos EUA têm mais riqueza do que toda a riqueza dos 150 milhões mais pobres. O ter-se chegado a esta desproporção não pode deixar de ter resultado de uma séria degenerescência da base moral do capitalismo americano, desapossado do seu centro moral.

E isso explica o cinismo absoluto de uma sociedade profundamente preocupada com a moralidade privada dos seus políticos, seja do seu comportamento e orientações sexuais, seja do escrutínio total dos seus devaneios amorosos fora da caixa deixar degenerar a chamada moralidade pública das bases da sua organização económica e social. É esse o tema do segundo artigo, “A crise da moralidade pública e não da moralidade privada”.

Longe vão os tempos em que consumidores, trabalhadores e a comunidade em geral eram considerados stakeholders dos projetos empresariais numa lógica de partilha de interesses com os proprietários do capital e com os CEO que os representam. Essa relação está quebrada e uma das frentes que começou a ceder foi a da fiscalidade. Também por aqui se alimenta o populismo e o discurso da impunidade dos poderosos. A questão está em saber como realizar a regeneração moral de tudo isto. A terminologia não me agrada mas acaba por ser de regeneração que se deve falar e seguramente não será de dentro que ela vai acontecer.

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