quinta-feira, 17 de setembro de 2015

MEANS TESTED



(Estranhamente a matéria mais em foco do debate de hoje entre Costa e Passos na atmosfera da rádio)

A crise financeira de 2007-2008 e as suas repercussões em termos de consolidação de contas públicas acabaram por ter um impacto penalizador na magnitude de fundos públicos alocados às políticas sociais, designadamente nas políticas de proteção social. Já aqui referi que participei em colaboração com a colega Pilar González, que assumiu a interlocução com a ILO, num trabalho de análise das consequências desse processo para a generalização do modelo social europeu. O resultado desse trabalho foi publicado este ano na prestigiada editora inglesa da Edward Elgar, depois de ter sido publicada em documento de trabalho na própria ILO. Nesse trabalho coletivo, que compara economias avançadas como a Alemanha, França, Reino Unido e Suécia com países que experimentaram processos de ajustamento como Portugal, Espanha e Grécia, foi possível confirmar que a restrição de recursos públicos foi abordada e combatida de modo muito diverso pelos países em presença. Não sendo esta a oportunidade para uma exposição integral de todos os matizes diferenciadores, há pelo menos uma grande diferença que pode ser estabelecida: houve países que aproveitaram a consolidação das contas públicas para no âmbito de governos de direita liberal reduzirem substancialmente a magnitude de recursos públicos alocados à proteção social e outros em que as circunstâncias impuseram essa redução sem contudo alterar radicalmente o modelo de proteção social aplicado. O Reino Unido está declaradamente entre os primeiros e a França e a Suécia representam fielmente o segundo grupo. Nesse trabalho, mostrámos que o caso português, sobretudo com o processo de ajustamento da Troika se aproximou vertiginosamente do modelo do Reino Unido. Já não é a primeira vez que menciono neste blogue a sedução que o modelo britânico exerce na atual maioria no governo. A sedução passou mais recentemente a bajulação e a um governo “oferecido” à governação de Cameron e não é pelo casal Cameron passar férias em Portugal ou por Paulo Portas se sentir visceralmente conservador. Foi assim sobretudo a partir do momento em que os conservadores limparam o sebo ao Labour nas últimas eleições.

Ora, em toda essa transformação redutora da proteção social, seja ideologicamente comandada, seja imposta pela inevitabilidade do aperto orçamental, há uma palavra anglo-saxónica que atravessa um rol imenso de medidas de poupança fiscal – “means tested”. Ou seja, uma parte considerável das medidas de proteção social passa a não ser de aplicação universal, mas sujeita à confirmação de recursos. Como é compreensível, a forma de aplicação dos critérios “means tested” é muito variável e depende obviamente dos limiares de rendimento familiar ou de outra qualquer variável a partir dos quais a proteção social deixa de ser concedida para ser realocada aos mais pobres e necessitados. Na aplicação de medidas sujeitas à confirmação de recursos são admissíveis aqueles dois modos de abordagem atrás mencionados. A direita liberal normalmente fixa limiares que equivalem praticamente à extinção da proteção social. O recurso a este tipo de medidas por motivo exclusivo de consolidação de contas públicas estabelece regularmente limiares mais altos a partir dos quais a medida deixa de ser aplicada.

E há que o dizer que as medidas “means tested” não são particularmente difíceis de justificar perante a opinião pública, pois a cantilena de proteger os mais desfavorecidos fica sempre bem a um governo mesmo que mal-intencionado nas suas pretensões de reforma social. Tenho informações seguras de que as primeiras delegações da Troika ficaram algo espantados com a facilidade com o governo de Passos e Portas aceitou o corte das prestações sociais enquanto que resistia como podia aos pedidos de corte de rendas nas utilities recentemente privatizadas, energia e telecomunicações sobretudo. Manias compreensíveis.

O programa do PS coordenado por Mário Centeno dificilmente poderia no quadro ideológico em que se movimenta escapar à sedução do “means tested”. Daí não viria mal ao mundo se não soubéssemos que estas medidas não são neutras e correspondem sempre a cortes de prestações sociais. Seria por isso necessário ponderar bem os fundamentos de tal opção, sobretudo quando se lhe associam uma poupança fiscal. Isto não significa que eu não compreenda a sua inevitabilidade em alguns contextos, sobretudo porque ou a universalidade das medidas de proteção social implica uma forte seletividade nas mesmas, abdicando de intervir em alguns domínios, ou então as “means tested” são necessárias. Mas como destas medidas está o inferno da destruição do modelo social cheio, pedia-se ao PS algum cuidado na sua fundamentação.

Pois não é que António Costa bloqueou hoje no debate na explicação dos mil milhões de euros de poupança fiscal que pensa obter neste domínio, pelos vistos uma medida a aplicar em cerca de 250 milhões de euros ao ano? É certamente uma minudência no programa do PS. Poderíamos até pensar numa explicação psicanalítica para o bloqueio derivado de provavelmente ser uma medida que Costa teve de integrar no programa embora não seja um apreciador nato da mesma. Mas se há domínio em que se pede clareza é nas políticas sociais, pois aí é que é necessário fazer a devida diferença. A vida política tem destas coisas, minudências que podem tornar-se virais. Mas como qualquer alma aberta e informada poderia antecipar, a segurança social é claramente a dimensão mais vulnerável do programa do PS. Os números e os modelos podem fazer a diferença de fundamentação. Mas também abrem frentes de questionamento, como não poderia deixar de ser.

Penso que de qualquer modo os danos foram controlados. Partindo do princípio de que as forças estarão equilibradas entre o PS e a maioria, a questão nuclear estará no confronto entre a magnitude dos novos convencimentos que a maioria conseguirá agregar, incluindo potenciais abstencionistas, e os votos úteis que o PS possa agregar nestas duas últimas semanas. As sondagens deste próximo fim-de-semana poderão ajudar a esclarecer que dinâmicas de voto estarão em formação.

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