(Estranhamente
a matéria mais em foco do debate de hoje entre Costa e Passos na atmosfera da rádio)
A crise financeira de 2007-2008 e as suas repercussões em termos de
consolidação de contas públicas acabaram por ter um impacto penalizador na
magnitude de fundos públicos alocados às políticas sociais, designadamente nas
políticas de proteção social. Já aqui referi que participei em colaboração com
a colega Pilar González, que assumiu a interlocução com a ILO, num trabalho de
análise das consequências desse processo para a generalização do modelo social europeu.
O resultado desse trabalho foi publicado este ano na prestigiada editora
inglesa da Edward Elgar, depois de ter sido publicada em documento de trabalho
na própria ILO. Nesse trabalho coletivo, que compara economias avançadas como a
Alemanha, França, Reino Unido e Suécia com países que experimentaram processos
de ajustamento como Portugal, Espanha e Grécia, foi possível confirmar que a
restrição de recursos públicos foi abordada e combatida de modo muito diverso
pelos países em presença. Não sendo esta a oportunidade para uma exposição
integral de todos os matizes diferenciadores, há pelo menos uma grande
diferença que pode ser estabelecida: houve países que aproveitaram a consolidação
das contas públicas para no âmbito de governos de direita liberal reduzirem
substancialmente a magnitude de recursos públicos alocados à proteção social e
outros em que as circunstâncias impuseram essa redução sem contudo alterar
radicalmente o modelo de proteção social aplicado. O Reino Unido está
declaradamente entre os primeiros e a França e a Suécia representam fielmente o
segundo grupo. Nesse trabalho, mostrámos que o caso português, sobretudo com o
processo de ajustamento da Troika se aproximou vertiginosamente do modelo do
Reino Unido. Já não é a primeira vez que menciono neste blogue a sedução que o
modelo britânico exerce na atual maioria no governo. A sedução passou mais
recentemente a bajulação e a um governo “oferecido” à governação de Cameron e não
é pelo casal Cameron passar férias em Portugal ou por Paulo Portas se sentir
visceralmente conservador. Foi assim sobretudo a partir do momento em que os
conservadores limparam o sebo ao Labour nas últimas eleições.
Ora, em toda essa transformação redutora da proteção social, seja
ideologicamente comandada, seja imposta pela inevitabilidade do aperto
orçamental, há uma palavra anglo-saxónica que atravessa um rol imenso de
medidas de poupança fiscal – “means
tested”. Ou seja, uma parte considerável das medidas de proteção social
passa a não ser de aplicação universal, mas sujeita à confirmação de recursos. Como
é compreensível, a forma de aplicação dos critérios “means tested” é muito variável e depende obviamente dos limiares de
rendimento familiar ou de outra qualquer variável a partir dos quais a proteção
social deixa de ser concedida para ser realocada aos mais pobres e necessitados.
Na aplicação de medidas sujeitas à confirmação de recursos são admissíveis
aqueles dois modos de abordagem atrás mencionados. A direita liberal
normalmente fixa limiares que equivalem praticamente à extinção da proteção
social. O recurso a este tipo de medidas por motivo exclusivo de consolidação
de contas públicas estabelece regularmente limiares mais altos a partir dos quais
a medida deixa de ser aplicada.
E há que o dizer que as medidas “means
tested” não são particularmente difíceis de justificar perante a opinião pública,
pois a cantilena de proteger os mais desfavorecidos fica sempre bem a um
governo mesmo que mal-intencionado nas suas pretensões de reforma social. Tenho
informações seguras de que as primeiras delegações da Troika ficaram algo
espantados com a facilidade com o governo de Passos e Portas aceitou o corte
das prestações sociais enquanto que resistia como podia aos pedidos de corte de
rendas nas utilities recentemente
privatizadas, energia e telecomunicações sobretudo. Manias compreensíveis.
O programa do PS coordenado por Mário Centeno dificilmente poderia no
quadro ideológico em que se movimenta escapar à sedução do “means tested”. Daí não viria mal ao
mundo se não soubéssemos que estas medidas não são neutras e correspondem
sempre a cortes de prestações sociais. Seria por isso necessário ponderar bem
os fundamentos de tal opção, sobretudo quando se lhe associam uma poupança
fiscal. Isto não significa que eu não compreenda a sua inevitabilidade em
alguns contextos, sobretudo porque ou a universalidade das medidas de proteção
social implica uma forte seletividade nas mesmas, abdicando de intervir em alguns
domínios, ou então as “means tested”
são necessárias. Mas como destas medidas está o inferno da destruição do modelo
social cheio, pedia-se ao PS algum cuidado na sua fundamentação.
Pois não é que António Costa bloqueou hoje no debate na explicação dos mil milhões
de euros de poupança fiscal que pensa obter neste domínio, pelos vistos uma
medida a aplicar em cerca de 250 milhões de euros ao ano? É certamente uma
minudência no programa do PS. Poderíamos até pensar numa explicação psicanalítica
para o bloqueio derivado de provavelmente ser uma medida que Costa teve de
integrar no programa embora não seja um apreciador nato da mesma. Mas se há domínio
em que se pede clareza é nas políticas sociais, pois aí é que é necessário
fazer a devida diferença. A vida política tem destas coisas, minudências que
podem tornar-se virais. Mas como qualquer alma aberta e informada poderia
antecipar, a segurança social é claramente a dimensão mais vulnerável do
programa do PS. Os números e os modelos podem fazer a diferença de fundamentação.
Mas também abrem frentes de questionamento, como não poderia deixar de ser.
Penso que de qualquer modo os danos foram controlados. Partindo do princípio
de que as forças estarão equilibradas entre o PS e a maioria, a questão nuclear
estará no confronto entre a magnitude dos novos convencimentos que a maioria
conseguirá agregar, incluindo potenciais abstencionistas, e os votos úteis que
o PS possa agregar nestas duas últimas semanas. As sondagens deste próximo
fim-de-semana poderão ajudar a esclarecer que dinâmicas de voto estarão em
formação.
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