terça-feira, 29 de setembro de 2015

O EMBUSTE E A VERDADEIRA RAZÃO




(Reflexões adaptadas ao caso português inspiradas pela lucidez de um post de Simon Wren-Lewis)

Simon Wren-Lewis não é um fervoroso seguidor de Jeremy Corbyn, nem um perigoso esquerdista resguardado no regaço de uma qualquer universidade de terceira ou quarta categoria. É um macroeconomista de Oxford, rigoroso, mas que não se coíbe de intervir na vida política britânica, denunciando quem “fornece gato por lebre” com o mais cândido pensamento de quem está a servir o serviço público e a pátria. Tem sido um persistente crítico do governo de Cameron e Osborne e bom seria que o Labour o tivesse ouvido na preparação do último ato eleitoral que valeu a reeleição com maioria absoluta aos Conservadores, premiando o “gato por lebre” ou seja a manipulação democrática.

Wren-Lewis analisa em pormenor as razões na altura aparentemente fundadas para que na eminência de uma recuperação sólida da economia britânica Cameron e Osborne em 2010 se tivessem focado na desalavancagem da dívida britânica. E não uma redução de dívida qualquer. O propósito de uma descida rápida do défice público, com profundas implicações em termos de redução da despesa pública e da qualidade dos serviços públicos britânicos. Os desenvolvimentos macroeconómicos posteriores, com a recuperação a mostrar-se bem mais agónica do que o esperado e sobretudo o produto potencial a continuar abaixo do valor pré-crise de 2007-2008 evidenciaram rapidamente que a relação défice-dívida-austeridade ocultava algo de mais abrangente, mas que não era apresentado aos eleitores como tal. E o que é mais trágico nesta matéria é que Cameron-Osborne se apresentaram em 2015 ao eleitorado com um programa renovado de austeridade continuada e, pasme-se, ganharam com maioria absoluta, claro que muito devido à alarmante inépcia trabalhista.

Wren-Lewis desenterra inteligentemente algumas posições de economistas que em 2010 apoiaram a decisão de Cameron-Osborne se focarem na redução da dívida , neste caso particular Lord Turnbull, que já teve responsabilidades governativas. E é significativo que seja um ex-apoiante de Cameron-Osborne a denunciar a situação de gato por lebre aqui escondida com rabo de fora: usa-se a redução do défice e da dívida simplesmente para fazer passar uma ofensiva ideológica que não se tem a coragem de a apresentar como tal – a implantação de um Estado mais pequeno ou seja criar condições objetivas para a degradação da intervenção pública, reduzindo-a a escombros e transformá-lo em algo de irreversível. As palavras justas são cobardia e manipulação políticas e o pior é que o embuste é mais vasto. O tratado orçamental é isso mesmo. É uma ofensiva oculta, manipuladora da opinião pública, uma via indireta e eficaz para subverter o debate político, impondo sem escrutínio democrático uma mudança de regime económico. E, para memória futura da história que nos envergonhará, com o beneplácito e capitulação da social-democracia e socialismo europeus.

Claro que os países do sul se puseram a jeito, encarreirando pela via da inundação de capital vindo de fora a taxas irrecusáveis. Mas o “take-over” ideológico de que foram vítimas sem que o eleitorado fosse informado da mudança de regime económico que lhes estava a ser servido, frio e com dor, releva do mesmo embuste que talvez tenha tido no Reino Unido a sua expressão mais refinada e consequente. Também por cá e na sombra de um problema orçamental e de dívida se implanta uma mudança de regime económico que vai acabar na destruição do serviço público em geral, irreversível para algumas gerações, tamanho é o dano que tende a provocar.

Um embuste colossal vendido por vias travessas. E o que parece emergir como tragédia de que muita gente irá arrepender-se no futuro próximo é que perante uma escolha entre políticos manipuladores, que vendem com aparente candura gato por lebre e não têm a coragem de apresentar ao eleitorado o seu verdadeiro produto, e quem tem a coragem e o risco de apresentar claramente ao que vem, com números e um programa sobre o qual se compromete, algum eleitorado opte pelos primeiros. E para o eleitorado de esquerda mais à esquerda que vai continuar a ter os seus inconsequentes orgasmos de protesto, misturados com a nostalgia de um 25 de abril que não volta mais, levando no lombo com as perversidades dos manipuladores, só tenho uma palavra: “make love, not shit”, de mal o menos.

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