Volto a Daniel Bessa (DB), desta vez para me congratular pelo registo de razoável normalidade em que se veio posicionar na sua coluna do “Expresso” deste sábado. Recorrendo a uma entrevista de despedida do homem do FMI em Portugal, o austríaco Albert Jaeger (AJ), em que este sublinha nomeadamente que o desafio que está colocado a Portugal é bem maior do que o de uma significativa absorção dos seus gigantescos níveis de desemprego (entre 620 mil desempregados oficiais e 243 mil disponíveis para trabalhar mas em situação de desencorajamento), DB parece sobretudo preocupado em tentar colocar-se do lado da solução.
Com efeito, segundo a opinião de AJ validada por DB, cerca de 20% do emprego existente em Portugal reportar-se-á a mais de cem mil empresas de muito baixa produtividade e muito alto endividamento, cuja viabilidade está condenada e cujo encerramento é apenas uma questão de tempo. Ou seja: qualquer coisa como novecentas mil a um milhão de pessoas neste momento empregadas são sérias candidatas ao desemprego nos próximos anos, colocando a política económica portuguesa num plano de gravidade e urgência radicalmente diverso daquele que vem sendo politicamente proclamado (e discutido às décimas pelos grandes partidos). Neste quadro, a sugestão de DB – um segundo mercado de emprego, tendo por grandes áreas de aplicação a defesa e conservação do património e a assistência à terceira idade – resulta num louvável contributo para que enfrentemos o problema em termos sérios.
Resta o bico de obra dos detalhes, desses malvados dos detalhes. Porque a proposta não pode deixar de merecer alguns remoques ou interrogações, que resumo em três pontos: primeiro, haverá que não esquecer de perguntar o que foi feito, perante este desastroso estado de coisas, da “transformação estrutural” que nos ia chegar pela mão da Troika e do para além dela de Passos e do Portas revogável; segundo, importará não evitar uma palavra de espanto perante a apresentação de uma hipótese de trabalho assente num “emprego assistido, público, no terceiro setor” custando 10 mil milhões de euros anuais em salários diretos (benditos privados, desabafar-se-á por um lado, mais quem paga?, quererá saber-se por outro, mais há vida para além do défice e da dívida, apregoar-se-á ainda); terceiro, será decente não iludir as prioridades (do crescimento à competitividade internacional) e as (in)compatibilidades (um terço da população ativa num segundo mercado de emprego, elevada exigência em atividades pouco eficientes, utilizadores a pagar diante do nível de tributação já alcançado e por aí fora) que antes ocupavam a primeira linha das discursatas liberalizantes.
Moral de uma história de duvidosa moral: o voluntarismo é bem melhor do que a maledicência, mas a retórica e o manuseamento da máquina de calcular não dão saída que satisfaça à melhor das vontades que se vá querendo exprimir. Que o problema de Portugal é um quebra-cabeças, um verdadeiro cu de boi mesmo, já não é matéria de novidade desde que o jovem António Barreto caraterizou o nosso “capitalismo atrasado e dependente” – por muito que tanto se tenham procurado disfarçar os seus principais traços, escondendo-os debaixo do tapete dos fundos europeus e do cavaquismo ou da moeda única e do endividamento, tudo terminando apoteoticamente na arrasadora expansão austeritarista destes quatro desgraçados anos em que se fizeram hinos à chegada da Troika e se deram louvores à excelência do seu diagnóstico e da sua receita para finalmente se acabar a festejar a mentira da sua alegada dispensa e a dura realidade do empobrecimento e da resignação...
(Álvaro Fernández Ros, “Ros”, http://elpais.com)
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