segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

A ENTREVISTA DE CALDEIRA CABRAL




(Equilíbrio, ideias consolidadas e duas interrogações, é o que ressalta da entrevista de Caldeira Cabral ao Público)

Estamos no marco dos 50 dias de Governo e os ministros começam, comunicacionalmente, a sair da toca. Não será indiferente o modo como essa saída se processar. Dominar ou não o tempo dessa saída é crucial. Exemplo: a saída da toca do ministro da Educação Tiago Brandão Rodrigues não pode dizer-se que tenha sido conseguida com domínio total da situação, foi antes obrigado a sair por força de deliberações do Parlamento. O ministro da Economia Caldeira Cabral gozou de outra margem de manobra, a pasta já não é o que era, e por isso a sua entrevista no Público é mais distendida e sem grandes matérias de controvérsia.

Li com atenção e agrado a entrevista (ver link aqui) e há algumas matérias que vale a pena realçar, distinguindo aqui entre as que me parecem mais sólidas e as que me suscitam mais reservas.

Caldeira Cabral apresenta-se de moto próprio como um ministro não intervencionista e acho que está na direção certa. As empresas em Portugal não necessitam que o Governo as substitua. Necessitam apenas que ele crie um quadro de orientações estável e compatível com os equilíbrios sociais e políticos e que agilize o melhor possível os mecanismos de apoio às PME que os Fundos Estruturais do Portugal 2020 têm disponíveis. Estes, convenhamos, constituem praticamente os únicos instrumentos de política pública que o quadro apertado das regras da concorrência europeia nos permite implementar, para já não falar da penúria de recursos orçamentais nacionais. Por isso, sem margem de manobra para uma política industrial mais robusta, o que é fundamental é assegurar que os apoios à inovação e à internacionalização das empresas não caiam em saco roto e que haja efeitos de contágio e demonstração entre empresas apoiadas e empresas não apoiadas. O novo ministro alinha pelo mesmo registo quando defende que, para além da aposta nos transacionáveis, o Governo não deve comprometer-se com apoios a setores específicos. Invoca que os empresários portugueses tanto responderam proativamente com inovação nos setores mais tradicionais (cuja classificação deixou de fazer sentido) como em setores de maior ponta tecnológica. Fiquei entretanto sem saber se o ministério da Economia vai deixar cair a política de clusters e de estratégias de eficiência coletiva iniciada no período de programação 2007-2013. Não entendi bem se a sua não inclinação para o apoio a setores específicos inclui o relançamento da política de clusters ou se, pelo contrário, estaremos perante mais um instrumento de política pública que cai sem apelo nem agravo. Se relacionarmos esta questão com a preocupação de Caldeira Cabral em intensificar os níveis de transferência de conhecimento e de tecnologia da investigação científica e tecnológica (largamente apoiada neste quadro) para as empresas seria bom que o ministro clarificasse de vez que avaliação faz da política de clusters aos soluços e avanços intermitentes. As condições de grande intermitência com que estas políticas acabam por ser implementadas não permitirão nunca avaliar se os não resultados derivam da política ou da maneira como é implementada.

A parte mais interessante e controversa da entrevista prende-se com a tentativa que Caldeira Cabral faz de demonstrar que o período de ajustamento não foi particularmente benéfico para a aceleração das exportações. Não discuto a observação do ministro de que os anos em que as exportações mais cresceram foram precisamente anos de não ajustamento (2006, 2007, 2010 e 2011). Para além disso, no período de ajustamento, as autoridades responsáveis pelo mesmo não foram capazes de compreender o efeito penalizador da recessão europeia, desconstruindo a pretensa coerência interna do programa de ajustamento ao colocar a evolução das exportações apenas dependente da chamada desvalorização interna. O ministro terá razão quando afirma que o encolhimento da procura interna não é condição suficiente para a aceleração das exportações. Quando muito, existem evidências de que as dificuldades do mercado interno levaram algumas empresas a encontrar sobretudo em Angola mercados de substituição para aproveitar capacidade produtiva instalada e não aproveitada. Iremos viver nos próximos tempos a ressaca dos problemas gigantescos com que a economia angola irá defrontar-se nos próximos anos. Em Lisboa há quem fale de 100.000 indivíduos regressados de Angola nos últimos tempos e os angolanos com dupla nacionalidade (portuguesa e angolana) tenderão a utilizar o nosso sistema de proteção social. Tempos difíceis anunciam-se por essas bandas. A vertiginosa queda bolsista da Mota Engil é disso um indicador eloquente.

Por isso, mesmo que a procura interna esteja ela própria fortemente internacionalizada (a chamada internacionalização do mercado interno), não é seguro que o perfil produtivo de aproveitamento desse mercado e de exportação seja similar e facilmente comutável.

Caldeira Cabral parece sustentar que, quanto mais o mercado nacional crescer, mais músculo as empresas terão para se internacionalizar (palavras aliás assumidas pelos jornalistas na apresentação da entrevista). O ministro, não sei se conscientemente ou não, invoca aqui uma das mais relevantes teorias do comércio internacional devidas a um economista sueco Staffan Linder que defendia que a conquista do mercado interno (internacionalizado) é o melhor instrumento de capacitação para o mercado externo. Porter invoca-o no The Competitive Advantage of Nations, destacando o papel da procura interna para as empresas aprenderem antes de se dedicarem à exploração dos mercados externos, embora as mudanças de contexto observadas na economia mundial desde a obra de Linder (1961) tenham apagado aquele contributo. Esta questão é controversa, sobretudo quando a conquista do mercado interno se faz em torno de atividades não tão exigentes em termos de procura e de consumidores como o terá que ser feito em relação ao mercado externo. Se a conquista do mercado interno é concretizada no âmbito de uma procura interna progressivamente diversificada e exigente do ponto de vista da competitividade e se esse mercado interno está fortemente internacionalizado então o domínio do mercado interno pode ser considerado elemento de capacitação para os voos da exportação. Este princípio, porém, pode cair seja porque o mercado interno é incipiente, seja porque não é fortemente internacionalizado.

De acordo com o discurso de Caldeira Cabral, o reforço da procura interna resultante das medidas do programa económico do PS, transformado pelo pacto parlamentar, não será incompatível com o reforço das exportações, não criando assim uma situação de défice externo. Oxalá os resultados da previsão do ministro correspondam à sua confiança. O pior que nos poderia acontecer era uma situação de défices gémeos agravados, público e externo.

A outra interrogação que a entrevista deixa é a do propósito corretíssimo de promover condições de capitalização de empresas com baixíssimo grau de autonomia financeira e largamente dependentes do financiamento bancário. Com a trapalhada anunciada da Instituição Financeira para o Desenvolvimento (vulgo Banco de Fomento) ainda não entendi como é que este propósito justo vai ser concretizado. E ele poderia ser uma pedrada no charco, já que o problema se arrasta há décadas e os dados da central de balanços do Banco de Portugal continuam a não dar sinais de que a baixa autonomia financeira das PME se tenha alterado.

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