quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

PIKETTY DE NOVO




(A forma aberta como Thomas Piketty tem discutido o Capital no Século XXI transforma-o num economista com grande capacidade de disseminação de ideias e com contributo decisivo para o avanço do tema da desigualdade como domínio de investigação)

Sob o patrocínio do sempre criativo blogue “Out of the Crooked Timber” realizou-se nos fins de 2015 um seminário com alguma expressão focado na obra de Piketty e agora publicado sob a forma de documento on line, registado segundo um modelo de Creative Commons Attribution, o que não é certamente por acaso.

O documento em PDF com todos os contributos presentes a esse seminário pode ser consultado aqui. 

Nos primeiros dias de janeiro deste ano, o Out of the Crooked Timber publicou um artigo de Thomas Piketty (ver link aqui), refletindo ele próprio sobre uma espécie de autoavaliação da sua obra face aos contributos que o referido seminário proporcionou. Analisarei esse artigo sob alguns aspetos que me interessa destacar neste blogue, mas interessa-me desde já destacar a modéstia com que Piketty situa a sua obra, tanto mais louvável quanto se sabe que ela foi um espantoso êxito de vendas, algo muito pouco visto em obras densas e académicas, no caso do Capital com abundante informação empírica meticulosamente trabalhada.

É curioso assinalar que Piketty apresenta o seu livro como essencialmente um trabalho de história da distribuição do rendimento e da riqueza, não se esquecendo de registar que o trabalho só foi possível através da cooperação de um grupo de investigadores, tamanha é a tarefa de base necessária para reconstituir grandes séries sobre o tema e propor interpretações sobre o comportamento das mesmas. A mensagem implícita nesta tomada de posição é crucial para o futuro da economia. Piketty reivindica-se da tradição de um Simon Kuznets e isso é simplesmente fabuloso numa época em que o trabalho econométrico muitas vezes abstrato substituiu para muita gente o aturado trabalho de composição das bases empíricas de referência sobre as quais se pode construir uma visão do longo prazo, neste caso da distribuição do rendimento e da riqueza. A existência de uma obra desta natureza e o êxito e discussão de ideias que tem provocado é crucial para despertar jovens investigadores para domínios da análise económica e histórica, retirando-os da influência da modelização sofisticada sem qualquer poder de intervenção sobre as sociedades.

É particularmente importante o modo como Piketty critica os que quiseram ver no seu contributo apenas o efeito da relação r > g, ou seja do gap existente entre a taxa de retorno do capital r e a taxa de crescimento da economia g, como o único fator explicativo da concentração da riqueza observada ao longo do século XX. Piketty, embora trabalhe aquela relação e lhe atribua um poder explicativo, não a considera mesmo o fator explicativo essencial. Traz para a análise questões como as mudanças institucionais e os choques políticos e reconhece que não é aquela relação que pode explicar a crescente desigualdade dos rendimentos do trabalho, matéria a que já me referi quando apresentei a desigualdade como tema de 2015. Com essa relativização da importância explicativa da relação r > g, Piketty o que nos abre é um vasto espaço de investigação em torno de uma teoria geral da desigualdade, na qual temas como a desigualdade de acesso às qualificações, a queda do investimento público em educação, a degradação das condições de ética empresarial e de corporate governance, a alteração de relações de força no mercado de trabalho, a desindicalização das economias devem ser integrados.

O gap entre as taxas r e g é assim apresentado como um fator amplificador do efeito sobre a desigualdade da riqueza provocado por choques sociais e políticos, o que vem ao encontro da velha tradição cambridgiana (UK) de situar os fatores económicos da distribuição do rendimento no seio de relações de força sociais e políticas. Piketty vai ao ponto de colocar em evidência que pequenas alterações no gap entre r e g amplificam substancialmente o efeito sobre a desigualdade de determinados choques, sejam demográficos, económicos ou financeiros.

Mas onde me parece que os contributos de Piketty e da investigação que a sua peculiar maneira de disseminar conhecimento vai gerar irão mostrar-se decisivos para uma intervenção política de matriz social é no tema da política de impostos. Piketty (juntamente com Emmanuel Saez) está a construir as bases de uma teoria da punção fiscal ótima envolvendo impostos sobre a riqueza herdada (designadamente sobre a propriedade), impostos sobre a riqueza criada e os rendimentos do capital, não ignorando como é óbvio a tributação dos rendimentos do trabalho. A multidimensionalidade do capital interpela bastante os programas de intervenção de matriz socialista e social-democrata. Piketty tem a perfeita consciência de que a abordagem da desigualdade em estreita articulação com as relações de propriedade e a mudança político-institucional está simplesmente no dealbar de um novo mundo a investigar. A capacidade de novos movimentos sociais estimularem mudanças institucionais com impacto potencial na multidimensionalidade do capital, bem como a integração na explicação da desigualdade de temas como o uso do solo, as políticas de habitação e os direitos da propriedade intelectual são variáveis que alargam consideravelmente o campo da investigação e nem com todas a relação entre r e g conserva a sua função de efeito amplificador de choques. E, di-lo com clareza, traz para o centro das futuras preocupações um controlo mais intenso dos corpos de administração das empresas por parte dos trabalhadores, com maior transparência da informação económica ao serviço da democratização das instituições.

Ou muito me engano ou a obra de Piketty vai transformar-se num contributo seminal para a revitalização da social-democracia na Europa.


E acabo com uma evidência que a mim próprio causou algum impacto. Até uma Suécia apresenta ao longo do tempo mais recente um agravamento da desigualdade, o que mostra bem a natureza estrutural das forças que comandam a desigualdade.

Sem comentários:

Enviar um comentário