(A forma aberta como
Thomas Piketty tem discutido o Capital no Século XXI transforma-o num economista com grande capacidade
de disseminação de ideias e com contributo decisivo para o avanço do tema da
desigualdade como domínio de investigação)
Sob o patrocínio do sempre criativo blogue “Out of the Crooked Timber” realizou-se nos
fins de 2015 um seminário com alguma expressão focado na obra de Piketty e
agora publicado sob a forma de documento on line, registado segundo um modelo
de Creative
Commons Attribution, o que não é certamente por acaso.
O documento em PDF com todos os contributos presentes a
esse seminário pode ser consultado aqui.
Nos primeiros dias de janeiro deste ano, o Out of the Crooked Timber publicou um
artigo de Thomas Piketty (ver link aqui), refletindo ele próprio sobre uma espécie
de autoavaliação da sua obra face aos contributos que o referido seminário
proporcionou. Analisarei esse artigo sob alguns aspetos que me interessa
destacar neste blogue, mas interessa-me desde já destacar a modéstia com que
Piketty situa a sua obra, tanto mais louvável quanto se sabe que ela foi um
espantoso êxito de vendas, algo muito pouco visto em obras densas e académicas,
no caso do Capital com abundante informação empírica meticulosamente trabalhada.
É curioso assinalar que Piketty apresenta o seu livro
como essencialmente um trabalho de história da distribuição do rendimento e da riqueza,
não se esquecendo de registar que o trabalho só foi possível através da cooperação
de um grupo de investigadores, tamanha é a tarefa de base necessária para
reconstituir grandes séries sobre o tema e propor interpretações sobre o
comportamento das mesmas. A mensagem implícita nesta tomada de posição é
crucial para o futuro da economia. Piketty reivindica-se da tradição de um
Simon Kuznets e isso é simplesmente fabuloso numa época em que o trabalho econométrico
muitas vezes abstrato substituiu para muita gente o aturado trabalho de
composição das bases empíricas de referência sobre as quais se pode construir
uma visão do longo prazo, neste caso da distribuição do rendimento e da riqueza.
A existência de uma obra desta natureza e o êxito e discussão de ideias que tem
provocado é crucial para despertar jovens investigadores para domínios da análise
económica e histórica, retirando-os da influência da modelização sofisticada
sem qualquer poder de intervenção sobre as sociedades.
É particularmente importante o modo como Piketty critica
os que quiseram ver no seu contributo apenas o efeito da relação r > g, ou
seja do gap existente entre a taxa de retorno do capital r e a taxa de crescimento
da economia g, como o único fator explicativo da concentração da riqueza
observada ao longo do século XX. Piketty, embora trabalhe aquela relação e lhe
atribua um poder explicativo, não a considera mesmo o fator explicativo
essencial. Traz para a análise questões como as mudanças institucionais e os
choques políticos e reconhece que não é aquela relação que pode explicar a
crescente desigualdade dos rendimentos do trabalho, matéria a que já me referi
quando apresentei a desigualdade como tema de 2015. Com essa relativização da
importância explicativa da relação r > g, Piketty o que nos abre é um vasto
espaço de investigação em torno de uma teoria geral da desigualdade, na qual
temas como a desigualdade de acesso às qualificações, a queda do investimento público
em educação, a degradação das condições de ética empresarial e de corporate governance, a alteração de
relações de força no mercado de trabalho, a desindicalização das economias
devem ser integrados.
O gap entre as
taxas r e g é assim apresentado como um fator amplificador do efeito sobre a
desigualdade da riqueza provocado por choques sociais e políticos, o que vem ao
encontro da velha tradição cambridgiana (UK) de situar os fatores económicos da
distribuição do rendimento no seio de relações de força sociais e políticas. Piketty
vai ao ponto de colocar em evidência que pequenas alterações no gap entre r e g amplificam substancialmente
o efeito sobre a desigualdade de determinados choques, sejam demográficos, económicos
ou financeiros.
Mas onde me parece que os contributos de Piketty e da
investigação que a sua peculiar maneira de disseminar conhecimento vai gerar irão
mostrar-se decisivos para uma intervenção política de matriz social é no tema
da política de impostos. Piketty (juntamente com Emmanuel Saez) está a
construir as bases de uma teoria da punção fiscal ótima envolvendo impostos
sobre a riqueza herdada (designadamente sobre a propriedade), impostos sobre a
riqueza criada e os rendimentos do capital, não ignorando como é óbvio a
tributação dos rendimentos do trabalho. A multidimensionalidade do capital
interpela bastante os programas de intervenção de matriz socialista e social-democrata.
Piketty tem a perfeita consciência de que a abordagem da desigualdade em
estreita articulação com as relações de propriedade e a mudança político-institucional
está simplesmente no dealbar de um novo mundo a investigar. A capacidade de
novos movimentos sociais estimularem mudanças institucionais com impacto
potencial na multidimensionalidade do capital, bem como a integração na
explicação da desigualdade de temas como o uso do solo, as políticas de habitação
e os direitos da propriedade intelectual são variáveis que alargam consideravelmente o campo da investigação e nem com todas a relação entre r e g conserva a sua função de efeito amplificador de choques. E, di-lo com clareza, traz para o
centro das futuras preocupações um controlo mais intenso dos corpos de
administração das empresas por parte dos trabalhadores, com maior transparência
da informação económica ao serviço da democratização das instituições.
Ou muito me engano ou a obra de Piketty vai
transformar-se num contributo seminal para a revitalização da social-democracia
na Europa.
E acabo com uma evidência que a mim próprio causou algum
impacto. Até uma Suécia apresenta ao longo do tempo mais recente um agravamento
da desigualdade, o que mostra bem a natureza estrutural das forças que comandam
a desigualdade.
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