quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

OS DEBATES SÃO COMO AS CEREJAS




(Tudo começou num triálogo na transição de 2015 para 2016 entre Lawrence Summers, Brad DeLong e Paul Krugman e rapidamente se transformou num programa de discussão que poderá prolongar-se por todo o ano de 2016)

Tenho por adquirido que a blogosfera económica constitui presentemente um poderoso meio de progressão do conhecimento em economia, agitando ideias, proporcionando uma rápida comunicação de resultados de investigação em curso e, se os protagonistas assim o quiserem, garantindo melhores condições de replicação da investigação realizada (tema a que regressarei proximamente, estimulado por um sugestivo trabalho do monetarista e liberal John Cochrane, o que evidencia o espírito aberto deste blogue).

Há dias Justin Fox referia no Bloomberg View que nos anos 40 e 50, Paul Samuelson, ainda jovem professor, passava regularmente pelas instalações do Quarterly Journal of Economics, uma das mais potentes e prestigiadas revistas académicas de economia, para perceber o que ia sendo produzido nas restantes revistas. Com as devidas proporções, nos anos 70 e ainda nos anos 80, muitos de nós (e eu próprio) tínhamos um ritual similar de passagem pelos escaparates da biblioteca da Faculdade de Economia do Porto, diga-se sempre bem fornecidos, para anotar nas revistas o que valia a pena de uma fotocópia. Hoje, esse ritual está definitivamente abandonado, pois temos à beira de um clique a versão digital dos artigos maios recentes (descontando alguns processos tinhosos de embargo de publicação digital por um ano ou dois). Mas o motivo fundamental para abandonar esse ritual é o facto da blogosfera económica ter substituído em antecipação e profundidade de debate o universo das revistas.

Com isto não quero dizer que a blogosfera tenha substituído o campo da produção académica que, regra geral, era submetida para publicação nas revistas da especialidade. Há hoje muita produção científica que é publicada open source, veja-se por exemplo o livro que reproduz o debate sobre a obra de Piketty organizado pelo Out of the Crooked Timber cujo acesso aqui ontem divulguei. Não é disso que se trata. A diferença é que o debate sobre a produção científica pode ser realizado praticamente em tempo real, o que as revistas só conseguem fazer em câmara muito lenta. Além disso, a publicação em revistas é hoje uma matéria de poder e a iniquidade desse poder é lesiva do progresso do conhecimento.

Ora assim aconteceu entre os fins de 2015 e o dealbar de 2016 quando Lawrence Summers publicou (a 22 de dezembro) um pequeno post/artigo no âmbito do qual criticava a decisão do FED tomada em fins de dezembro de 2015 de iniciar provavelmente uma subida das taxas de juro de referência do FED, que Summers considera precoce. A partir deste contributo inicial, gerou-se uma discussão a três, um triálogo, juntando-se a Summers os contributos de Brad DeLong (seu companheiro de muitos artigos seminais para a evolução do conhecimento em economia) e Paul Krugman. Vou retirar da reflexão o lado mais apimentado da questão. Lawrence Summers foi, até um certo momento, adversário direto de Janet Yellen, Governadora do FED, no processo de escolha e substituição de Ben Bernanke.

Excluindo esse fait-divers, o contágio e abertura de frentes de debate que o artigo inicial suscitou só pode ser compreendido a meu ver pela natureza muito particular dos três economistas. Há elementos que os unem e algumas diferenças que contam para a nossa interpretação.

Um elemento comum aos três economistas é o facto de partilharem, coisa rara, um estatuto prestigiado simultaneamente na produção académica e formal (dos três Krugman é o que tem produzido menos nos últimos tempos) e na intervenção pública, realizada sobretudo com contributos de teoria apreciativa e não formalizada e com grande capacidade de impactar a opinião pública e gerar controvérsia e animar o debate. Lawrence Summers é o mais influente nos meios financeiros e empresariais, ao que não é estranho o seu estatuto de exercício de funções profissionais de administração e conselho em inúmeras instituições privadas, não falando no rasto da sua presidência de Harvard e no seu estatuto de secretário de Estado da governação Clinton. Brad DeLong é talvez o mais académico, sempre ancorado no poder dissuasor de Berkeley, mas com dois veículos poderosos de intervenção pública, o seu próprio blogue e a sua participação no Equitable Blog do think-tank de Washington Center for Equitable Growth. Utilizador e animador compulsivo do Tweeter, DeLong é talvez o mais imaginativo dos três na transmissão das suas ideias, tem uma capacidade de escrita praticamente em permanência e não gostaria de estar na pele dos seus, mulher e filhos ou quem quer que seja, pois dá a impressão que está sempre conectado e a produzir. A visualização de uma das suas aulas em Berkeley é um verdadeiro espetáculo de criatividade na função letiva. Paul Krugman é talvez o mais político dos três e a sua página e blogue de opinião no New York Times constitui uma poderosa janela de intervenção na opinião pública americana. A sua recente passagem de Princeton para o Luxembourg Income Study Center, sediado em Nova Iorque e onde tem a companhia de Branko Milanovic e Janet Gornick (diretora do centro) significa sobretudo a procura de tempo livre para a produção e intervenção, libertando-se das funções letivas em Princeton. Dizia-me o Professor Ricardo Reis de Colúmbia-Nova Iorque num almoço na Gulbenkian em 2015 que Krugman é muito introvertido e que a sua janela política é uma espécie de sucedâneo dessa timidez.

O que considero particularmente apelativo é que a contribuição inicial de Summers (que não é propriamente inicial pois vários artigos de opinião contra a decisão do FED precederam a reunião dos fins de dezembro de 2015) abriu um debate em várias frentes. O criticismo de Summers pode resumir-se numa acusação velada ao FED: “Os erros do FED não se devem a que os seus líderes sejam desprovidos de pensamento ou que não tenham espírito aberto ou não estejam preocupados com o crescimento e o emprego. Pelo contrário, suspeito que seja devido ao seu compromisso excessivo com os modelos e modos de pensamento existentes”. Esta acusação velada é construída com base em quatro argumentos: (i) o FED atribui uma probabilidade muito mais elevada a que a inflação atinja 2% do que os dados disponíveis o anunciam; (ii) tende a considerar os 2% de inflação mais como um limite superior do que uma meta, o que o faz rejeitar a hipótese de por algum tempo a inflação poder exceder os 2%; (iii) sem suporte analítico evidente, o FED parece admitir que a procura agregada é mais influenciada pelas variações da taxa de juro do que propriamente pelo nível desta última; (iv) o FED tenderia a subestimar o fenómeno da estagnação secular.

Ora, havendo aqui matéria que baste para futuros posts, a verdade é que este criticismo, vindo de quem vem, suscitou a abertura de um debate que abrange pelo menos as seguintes dimensões:

  • Uma discussão sobre o papel dos modelos em economia, entendidos como modos de organização de pensamento ou como mecanismos de descoberta de novas ideias através dos resultados por eles produzidos;

  • O poder dos livros de texto versus poder dos homens da prática e da governação;

  • Uma discussão sobre o problema da confiança nas economias versus o poder explicativo dos modelos.

Matéria rica e suficiente para uma discussão prolongada ao longo de 2016. Tudo na blogosfera económica.

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