(Tudo começou num
triálogo na transição de 2015 para 2016 entre Lawrence Summers, Brad DeLong e
Paul Krugman e rapidamente
se transformou num programa de discussão que poderá prolongar-se por todo o ano
de 2016)
Tenho por adquirido que a blogosfera económica constitui
presentemente um poderoso meio de progressão do conhecimento em economia,
agitando ideias, proporcionando uma rápida comunicação de resultados de
investigação em curso e, se os protagonistas assim o quiserem, garantindo
melhores condições de replicação da investigação realizada (tema a que
regressarei proximamente, estimulado por um sugestivo trabalho do monetarista e
liberal John Cochrane, o que evidencia o espírito aberto deste blogue).
Há dias Justin Fox referia no Bloomberg View que nos anos 40 e 50,
Paul Samuelson, ainda jovem professor, passava regularmente pelas instalações
do Quarterly Journal of Economics, uma das
mais potentes e prestigiadas revistas académicas de economia, para perceber o
que ia sendo produzido nas restantes revistas. Com as devidas proporções, nos
anos 70 e ainda nos anos 80, muitos de nós (e eu próprio) tínhamos um ritual
similar de passagem pelos escaparates da biblioteca da Faculdade de Economia do
Porto, diga-se sempre bem fornecidos, para anotar nas revistas o que valia a
pena de uma fotocópia. Hoje, esse ritual está definitivamente abandonado, pois
temos à beira de um clique a versão digital dos artigos maios recentes
(descontando alguns processos tinhosos de embargo de publicação digital por um
ano ou dois). Mas o motivo fundamental para abandonar esse ritual é o facto da
blogosfera económica ter substituído em antecipação e profundidade de debate o
universo das revistas.
Com isto não quero dizer que a blogosfera tenha
substituído o campo da produção académica que, regra geral, era submetida para
publicação nas revistas da especialidade. Há hoje muita
produção científica que é publicada open
source, veja-se por exemplo o livro que reproduz o debate sobre a obra de
Piketty organizado pelo Out of the
Crooked Timber cujo acesso
aqui ontem divulguei. Não é disso que se trata. A diferença é que o debate
sobre a produção científica pode ser realizado praticamente em tempo real, o
que as revistas só conseguem fazer em câmara muito lenta. Além disso, a
publicação em revistas é hoje uma matéria de poder e a iniquidade desse poder é
lesiva do progresso do conhecimento.
Ora assim aconteceu entre os fins de 2015 e o dealbar de
2016 quando Lawrence Summers publicou (a 22 de dezembro) um pequeno post/artigo
no âmbito do qual criticava a decisão do FED tomada em fins de dezembro de 2015
de iniciar provavelmente uma subida das taxas de juro de referência do FED, que
Summers considera precoce. A partir deste contributo inicial, gerou-se uma
discussão a três, um triálogo, juntando-se a Summers os contributos de Brad
DeLong (seu companheiro de muitos artigos seminais para a evolução do
conhecimento em economia) e Paul Krugman. Vou retirar da reflexão o lado mais
apimentado da questão. Lawrence Summers foi, até um certo momento, adversário
direto de Janet Yellen, Governadora do FED, no processo de escolha e
substituição de Ben Bernanke.
Excluindo esse fait-divers,
o contágio e abertura de frentes de debate que o artigo inicial suscitou só
pode ser compreendido a meu ver pela natureza muito particular dos três
economistas. Há elementos que os unem e algumas diferenças que contam para a
nossa interpretação.
Um elemento comum aos três economistas é o facto de
partilharem, coisa rara, um estatuto prestigiado simultaneamente na produção
académica e formal (dos três Krugman é o que tem produzido menos nos últimos
tempos) e na intervenção pública, realizada sobretudo com contributos de teoria
apreciativa e não formalizada e com grande capacidade de impactar a opinião
pública e gerar controvérsia e animar o debate. Lawrence Summers é o mais
influente nos meios financeiros e empresariais, ao que não é estranho o seu
estatuto de exercício de funções profissionais de administração e conselho em
inúmeras instituições privadas, não falando no rasto da sua presidência de
Harvard e no seu estatuto de secretário de Estado da governação Clinton. Brad
DeLong é talvez o mais académico, sempre ancorado no poder dissuasor de
Berkeley, mas com dois veículos poderosos de intervenção pública, o seu próprio
blogue e a sua participação no Equitable Blog do think-tank de Washington
Center for Equitable Growth. Utilizador e animador compulsivo do
Tweeter, DeLong é talvez o mais imaginativo dos três na transmissão das suas
ideias, tem uma capacidade de escrita praticamente em permanência e não
gostaria de estar na pele dos seus, mulher e filhos ou quem quer que seja, pois
dá a impressão que está sempre conectado e a produzir. A visualização de uma
das suas aulas em Berkeley é um verdadeiro espetáculo de criatividade na função
letiva. Paul Krugman é talvez o mais político dos três e a sua página e blogue
de opinião no New York Times
constitui uma poderosa janela de intervenção na opinião pública americana. A
sua recente passagem de Princeton para o Luxembourg Income Study Center, sediado em Nova Iorque e onde tem a
companhia de Branko Milanovic e Janet Gornick (diretora do centro) significa
sobretudo a procura de tempo livre para a produção e intervenção, libertando-se
das funções letivas em Princeton. Dizia-me o Professor Ricardo Reis de
Colúmbia-Nova Iorque num almoço na Gulbenkian em 2015 que Krugman é muito
introvertido e que a sua janela política é uma espécie de sucedâneo dessa
timidez.
O que considero particularmente apelativo é que a
contribuição inicial de Summers (que não é propriamente inicial pois vários
artigos de opinião contra a decisão do FED precederam a reunião dos fins de
dezembro de 2015) abriu um debate em várias frentes. O criticismo de Summers
pode resumir-se numa acusação velada ao FED: “Os
erros do FED não se devem a que os seus líderes sejam desprovidos de pensamento
ou que não tenham espírito aberto ou não estejam preocupados com o crescimento e
o emprego. Pelo contrário, suspeito que seja devido ao seu compromisso
excessivo com os modelos e modos de pensamento existentes”. Esta
acusação velada é construída com base em quatro argumentos: (i) o FED atribui uma
probabilidade muito mais elevada a que a inflação atinja 2% do que os dados disponíveis
o anunciam; (ii) tende a considerar os 2% de inflação mais como um limite superior
do que uma meta, o que o faz rejeitar a hipótese de por algum tempo a inflação poder
exceder os 2%; (iii) sem suporte analítico evidente, o FED parece admitir que a
procura agregada é mais influenciada pelas variações da taxa de juro do que
propriamente pelo nível desta última; (iv) o FED tenderia a subestimar o fenómeno
da estagnação secular.
Ora, havendo aqui matéria que baste para futuros posts, a
verdade é que este criticismo, vindo de quem vem, suscitou a abertura de um
debate que abrange pelo menos as seguintes dimensões:
- Uma discussão sobre o papel dos modelos em economia, entendidos como modos de organização de pensamento ou como mecanismos de descoberta de novas ideias através dos resultados por eles produzidos;
- O poder dos livros de texto versus poder dos homens da prática e da governação;
- Uma discussão sobre o problema da confiança nas economias versus o poder explicativo dos modelos.
Matéria rica e suficiente para uma discussão prolongada
ao longo de 2016. Tudo na blogosfera económica.
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