quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

GLOBALIZAÇÃO, PERDEDORES E DEMOCRACIA

(Financial Times)



(Martin Wolf tem no Financial Times um artigo inspirado que nos ajuda a compreender por que razão a degenerescência dos valores democráticos em alguns países está relacionada com efeitos não regulados da globalização)

Martin Wolf é um dos analistas mais profundos dos rumos da globalização e não é propriamente um amador destas questões. Wolf sempre foi entendido como um dos grandes defensores do processo de globalização. A sua obra inicial sobre o assunto, Why Globalization Works (Yale University Press) foi acolhida em 2004-2005 como um contributo seminal de raiz liberal para a defesa do processo. Curiosamente, Wolf nunca perdeu de vista a visão crítica do processo, embora em 2005 não tenha corretamente antecipado os malefícios da globalização financeira. A sua última obra The Shifts and the Shocks constitui um alerta incontornável para compreendermos que após 2007-2008 as coisas não podem ser vistas da mesma maneira. É assim que um autor com contributo seminal para uma compreensão liberal do fenómeno se transformou num crítico poderoso da ineficácia das principais economias do mundo e dos pensadores que as suportam em gerir macroeconomicamente o pós 2007-2008.

Martin Wolf compreendeu que a globalização não é um processo virtuoso do tipo em que todos ganham. Há vencedores e perdedores e essa divergência é tanto mais incómoda para a estabilidade política quanto mais se perceciona que vencedores e perdedores são sempre os mesmos, o que é a mesma coisa que dizer que os vencedores continuam a ganhar e os perdedores continuam a perder. Ora, em democracia, os perdedores destes processos têm no voto democrático uma arma decisiva para fazer ouvir as suas preocupações e penosidades. Wolf é lúcido quando situa a radicalização política implícita na emergência de posições autoritárias do tipo Donald Trump nos EUA  ou Frente Nacional em França, nacionalistas e estatizantes, como o resultado do pronunciamento político de grupos sociais perdedores na globalização. Ambos os exemplos programáticos constituem reações anti-globalização e ambos representam ameaças já não veladas mas reais à sustentação da democracia que podem instalar-se por força do voto democrático.

Num processo em que vencedores e perdedores permanecem durante um tempo substancial nas suas posições, manda a boa lógica distributiva que os ganhos dos vencedores sejam fonte de tributação pública para minimizar as penosidades dos perdedores. Ora, o comportamento da desigualdade nos países que lideram a globalização evidencia que essa redistribuição não está a ser concretizada. Do ponto de vista da distribuição do rendimento a nível mundial, Wolf cita os trabalhos já neste blogue por mais de uma vez recordados de Branko Milanovic, infelizmente com incidência até 2008, segundo os quais os grandes perdedores foram os 5% mais pobres do mundo e um escalão de rendimento definido pelo intervalo entre os percentis 75º e 90º. Os 5% mais pobres do mundo enfrentam um problema de representação política. O segundo grupo representa uma larga faixa da população nas economias mais avançadas em regra associada às suas classes médias. Será este último grupo o foco dos populismos políticos e é natural que face ao vazio da social-democracia tais grupos busquem novas representações políticas.

Gostaria de realçar que este confronto entre vendedores e perdedores crónicos da globalização nas suas formas mais avançadas não se confunde com o facto historicamente reconhecido que a evolução do desenvolvimento ao longo do tempo histórico sempre se traduziu na emergência de grupos sociais perdedores, seja a perda das classes associadas à agricultura, seja as populações que perderam o seu emprego por processos de mudança estrutural e intersetorial das economias. A globalização veio não só apressar precocemente algumas dessas mudanças, mas também complicar a perceção de algumas dessas mesmas mudanças. Por exemplo, em certos contextos é difícil compreender se algumas perdas de emprego se devem a processos tecnológicos ou a processos de perda induzidos pela globalização.

Wolf, a propósito de Davos, situa o problema no quadro de uma separação perigosa entre as elites de direita ou de esquerda e os interesses de grupos sociais penalizados pela globalização. Essa separação, o termo anglo-saxónico “detachment” é precioso, determina que a super-elite mundial representada em Davos seja vista como um grupo predador. E, de facto, nos últimos tempos os indicadores da distribuição do rendimento começam a mostrar que os benefícios do crescimento globalizado começam a concentrar-se perigosamente no topo. Ora uma parte da elite dirigente está nesse topo, para falar pelo menos nos CEO de topo, sempre prontos a dissertar sobre a condição social dos outros.

Imaginem-se as consequências catastróficas dos EUA poderem ser liderados por um populismo autoritário do tipo Trump. Mas para que isso seja combatido e para que a barrage à Frente Nacional também se ganhe é preciso uma nova política de enquadramento dos perdedores da globalização.

A lucidez de Martin Wolf impressiona. Mas até um liberal pró globalização tem dificuldade em ser ouvido.

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