A dias de completar 94 anos de vida, morreu esta Quarta-Feira um dos nossos melhores concidadãos: o arquiteto Nuno Teotónio Pereira.
Se houve pessoa admirável com quem me cruzei e que acabei por ter a sorte de poder conhecer, ela foi o Nuno. Dele recordo um episódio dos idos de 75 em que ele se deslocou em trabalho político (MES) ao Porto e me foi pedido que lhe desse dormida em minha casa – na manhã seguinte, deparei-me atónito com o sofá da sala por abrir e os lençóis intactos nos seus braços já que o Nuno tinha preferido dormir no chão para “não incomodar mais”; no que me toca, nunca esquecerei a suave e quase inocente autenticidade que emergia da sua fácies nem a força da naturalidade que ressaltava daquele despojamento.
O Nuno foi um dos nossos grandes arquitetos (quatro prémios Valmor) e um cidadão constantemente empenhado em causas cívicas e políticas (de entre as marcas que o distinguem sublinho a vigília de São Domingos que organizou com Sophia de Mello Breyner na passagem para 1969, a vigília da capela do Rato em 1973 e as quatro detenções de que foi alvo durante a Ditadura, tendo sido muito notória a imagem da sua libertação de Caxias dois dias depois do 25 de Abril de 1974), mas foi sobretudo um homem em toda a plenitude que a palavra integra, tão solidário e senhor dos seus valores quanto imperfeito/contraditório por força de uma natureza humana que sempre assumiu muito frontalmente (recordo o seu processo de rotura gradual com uma tradição política familiar de forte ligação ao regime salazarista, os fantasmas que nunca o abandonaram devido a algumas cedências às torturas da PIDE ou o seu corte com a prática do catolicismo na sequência da morte da sua primeira mulher durante um parto de risco que não quiseram evitar).
Após uma vida cheia e realizada pessoal e profissionalmente, os últimos anos do Nuno foram muito amargurados por razões associadas a um glaucoma que o cegou e o foi crescentemente conduzindo ao que chamava “um mundo escuro”, sem prejuízo de ir tentando manter/não perder o contacto com o entorno exterior (designadamente enquanto a audição lho permitiu) através da preciosa ajuda da sua companheira das últimas três a quatro décadas (a artista plástica brasileira Irene Buarque) e da proximidade possível de alguns amigos (como o pintor Rui Aguiar, que era aliás o meu informador essencial sobre o estado de saúde e psicológico do Nuno).
A última entrevista de vida do Nuno a que acedi foi a de um “Expresso” do ano passado (embora feita uns anos antes por José Pedro Castanheira e Cândida Santos Silva) e ela tinha o sugestivo título “Há o culto da imagem na arquitetura”. Porque o Nuno era um defensor – discutível, como é óbvio, e até talvez datado – de uma “definição lapidar da arquitetura” (que associava ao romano Vitrúvio) como tendo de obedecer a um equilíbrio fundamental entre a firmitas (consistência e boa qualidade da construção), a utilitas (funcionalidade) e a venustas (beleza ou estética). O resto da entrevista é um testemunho vivencial que vale bem a pena revisitar...
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