sábado, 9 de janeiro de 2016

PARA ALÉM DO BREXIT




(Talvez o processo do BREXIT e suas eventuais réplicas possam contribuir para alguma clarificação dos rumos da União Europeia, “stuck in the middle”)

O rol de previsões e antecipações sobre mais um ano que emerge trouxe-nos algumas reflexões sobre a situação de efetivo impasse em que a construção europeia se encontra. Se já do ponto de vista político, o “stuck in the middle” era a melhor descrição do lio em que o projeto está metido, os erros de política macroeconómica que o diretório europeu impôs à União Europeia e aos países sob resgate complicaram ainda mais a situação. É de facto alarmante como nas barbas das instituições europeias, o conservadorismo reacionário reinante na Hungria e na Polónia está a minar os alicerces da democracia. O sempre incisivo e sem papas na língua Nouriel Roubini não encontrou melhor síntese do que esta que vos passo a transmitir: “A Europa precisa de mais cooperação, integração, partilha de risco e solidariedade. Em vez disso, os Europeus parecem ter-se rendido ao nacionalismo, à balcanização, à divergência e desintegração”. Ora toma.

A interação deste trágico estado das coisas com a mais que provável vitória em referendo do afastamento do Reino Unido da União Europeia tem efeitos dinâmicos imprevisíveis. Para além das forças do BREXIT corresponderem a traços que se manifestam na sociedade britânica desde tempos imemoriais, é óbvio que quanto mais a situação interna europeia mais difícil se torna convencer parte do eleitorado britânico que vale a pena permanecer. A obtusa estratégia de Cameron (talvez intrinsecamente mais apostado no BREXIT do que na sua rejeição) de praticamente chantagear as instituições europeias para negociar o seu envolvimento na defesa da permanência não lembraria ao diabo menos letrado. Mesmo admitindo que as instâncias europeias se deixariam embalar por tão esdrúxula estratégia, o que ficaria em termos de equilíbrios institucionais na União seria um farrapo sem qualquer consistência.

No amplo espaço de discussão que o Social Europe constitui, há dias foi dado o devido eco a uma crónica de Jean Pisany-Ferry no Project Syndicate, na qual aquele intelectual europeísta chamava a atenção para a incapacidade de na União Europeia se conseguir uma combinação de rigidez e plasticidade (no diálogo e interação entre princípios constitucionais e de política) que, à escala nacional, tem permitido aos regimes democráticos nacionais adaptar-se às mudanças no sistema de preferências dos seus cidadãos. Ferry invoca nesse sentido a não sincronização da mudança política entre os países (por exemplo, a oposição entre a radicalização de esquerda e de direita, confrontando por exemplo Portugal e Espanha, por um lado e Hungria e Polónia, por outro). Invoca também a não visibilidade do potencial do Parlamento Europeu, asfixiado pelo facto das grandes decisões continuarem a produzir-se entre os governos nacionais (e não todos, esclareça-se). Refere também a peculiaridade dos limites existentes entre as matérias constitucional e legislativa na União Europeia, em que o estatuto de constitucionalidade se estendeu a todos os tratados, com revisão obrigando a unanimidade. A rigidez que daqui resulta constitui de facto uma forte penalização para a capacidade adaptativa da construção europeia. Não é fácil reorganizar os limites entre a dimensão constitucional e legislativa de modo a permitir uma maior liberdade das instituições europeias na formulação de políticas que, respeitando um dado quadro constitucional, proporcionasse uma maior capacidade de adaptação.

A pescadinha de rabo na boca entre a propensão para o Brexit e este estado de coisas na União Europeia é potencialmente explosiva. Harold James, um dos meus historiadores preferidos da globalização, chama entretanto a atenção para o risco de implosão da também frágil matriz identitária do Reino Unido que o BREXIT pode implicar intramuros. Com as devidas proporções de comparação, o Reino Unido enfrenta problemas similares aos da União Europeia. E a verdade é que entre a fortíssima propensão para o cosmopolitismo e integração da grande aglomeração de Londres e o restante Reino Unido há diferenças gigantescas.

James é subtil quando ridiculariza a sigla que os defensores da permanência na União Europeia adotaram: BSE – Britain Stronger in Europe. Já estamos a adivinhar o que os eurocéticos vão gozar com a expressão. Afinal, BSE também designa a doença degenerativa associada às chamadas vacas loucas. E, pelo estado que revela, a União Europeia caminha também para o seu processo degenerativo.

Sem comentários:

Enviar um comentário