domingo, 1 de junho de 2014

POLÍTICAS PÚBLICAS NA GULBENKIAN



Através de uma parceria entre a Fundação Calouste Gulbenkian e o Institut of Public Policy Thomas Jefferson – Correia da Serra (em que pontifica Tiago Trigo Pereira), as políticas públicas terão a honra de conferência em outubro de 2014, precedida em Junho de workshops com a pré-apresentação dos papers que servirão de suporte à referida conferência.
A mim e à minha colega Elisa Babo cabe-nos o tema da Territorialização de Políticas Públicas setoriais, mais propriamente e por nossa escolha das políticas de inovação e de cultura.
Reproduzo o enquadramento teórico e conceptual do trabalho que iremos apresentar, com primeira discussão em junho e desenvolvimentos até outubro.
1.ENQUADRAMENTO
1.1. Introdução ao tema / referenciais teóricos e conceptuais
Não é fácil identificar e delimitar com rigor na literatura o enquadramento teórico- conceptual do que entendemos neste trabalho por territorialização de políticas públicas (TPP). Um método expedito para o fazer pode consistir na procura de descritores anglo-saxónicos e os resultados não são abundantes: “place-based policies” é seguramente desde o Relatório Barca (Barca, 2009) a principal referência, mas “territory-based” and “local-based policies” são também exemplos identificáveis. Dispensamo-nos neste trabalho de mergulhar nas profundezas da economia espacial para dissertar em torno das diferenças entre os conceitos de “place”, “territory” e “local”, o que bastaria para dar conta da complexidade do enquadramento que procuramos.
Assumimos nesta reflexão a tese de que o tema da TPP resulta, não de um domínio ou programa de investigação bem delimitado, mas antes da convergência de um conjunto de tendências que atravessou várias disciplinas, das várias economias (do crescimento e da inovação, entre outras) à geografia, integrando o paradigma do desenvolvimento (policy-oriented) e muito inspirado na máxima de que “one size does not fit all”. Esse enquadramento explica a nosso ver a dificuldade de situar o quadro de referências e a melhor ilustração dessa dificuldade são as 21 páginas de bibliografia do Relatório Barca, através da qual é possível compreender as fontes de influência do que Barca designa de “place-based paradigm”.
Mas defendemos também a ideia de que o lento e conturbado advento das “place-based policies” não é o resultado apenas de rebeldias teóricas contra a corrente. Alguma capacidade de risco das políticas públicas e o papel de algumas instituições internacionais no lançamento de novos paradigmas de intervenção pública mesmo sem os quadros teóricos e conceptuais estarem completamente estabilizados devem ser aqui referenciados como marcos decisivos do referido advento. Aliás, a história da transmissão das ideias (conhecimento, teorias, paradigmas) e da sua transformação em paradigmas de intervenção pública mostra que ela nunca é apenas o reflexo do desenvolvimento e afirmação das teorias, incorporando outros factores para explicar a sua absorção por parte dos poderes públicos. É neste domínio que a criação do “Territorial Service” da OCDE constitui um elemento relevantíssimo de enquadramento. Os sucessivos “Territorial Reviews” (OECD, 2007) que o serviço foi realizando sobre diferentes países foram permitindo generalizar a lente territorial das políticas setoriais, dar alento ao fascinante tema da governação territorial multinível e horizontal-vertical para lá da geografia rígida dos quadros político-administrativos e destacar domínios de política setorial mais claramente territorializados (política de inovação e clusters). O mesmo se diga com a entrada no tema nas políticas comunitárias de que o já mencionado Relatório Barca representou o referencial pioneiro.
Nessa linha de reflexão e de convergência entre várias disciplinas, que poderíamos designar de descoberta mais ou menos coordenada do território como sujeito e objeto de políticas públicas, consideraremos que a TPP está para além da mera abordagem sobre o impacto territorial das políticas públicas. Poderíamos dizer que essa dimensão é uma condição necessária do conceito operacional da TPP, sobretudo aplicada às políticas macroeconómicas (incluindo as de ajustamento como as aplicadas em torno dos resgates financeiros), que de uma vez por todas têm de ser compreendidas como algo que produz impactos territoriais, frequentemente ignorados ou menosprezados. Iremos além dessa condição necessária e assumiremos que a TPP envolve um território de referência, uma visão descendente (“top-down”, setorial, vertical ou não) sobre o mesmo, mas também uma construção integrada e prospetiva de natureza ascendente (“bottom-up”), alimentada por processos e condições de participação multi-institucional e pública, quer ao nível das fases de planeamento quer de tomada de decisão. Importa aqui referir que as duas dimensões da abordagem (descendente e ascendente) não necessitam para gerir uma abordagem de TPP de se apresentar com o mesmo grau de consistência. Aliás, não raras vezes, o processo descendente apresenta-se mais robusto e tecnicamente fundamentado e nem sempre a dimensão ascendente resulta de um processo participado e abrangente. A consistência da abordagem da TPP é seguramente um problema de governance, mas a dimensão ascendente também o é, sobretudo em matéria de cooperação horizontal. Isto significa que para, em nosso entender, ser possível uma abordagem operativa de TPP é necessário e suficiente haver um território de aplicação, uma dinâmica institucional, mais ou menos organizada construída a partir e sobre o território e focada no futuro desse território e uma política pública (mais ou menos recetiva às particularidades desse território) descendente dirigida ou nele aplicável. Assim entendida, a TPP é uma equação que pode ou não ter resolução, tudo dependendo do modelo de governança que daí resultar.
(a desenvolver em sede de artigo final, com referências bibliográficas mais finas).
1.2. Porquê os domínios inovação e cultura?
A escolha dos domínios sobre os quais a nossa abordagem de TPP é aplicada resulta de um conjunto de critérios que não podem deixar de replicar o enquadramento teórico esboçado na secção anterior.
Em primeiro lugar, tivemos em conta a obrigatoriedade de se tratar de políticas públicas que não correspondam ao que poderíamos designar de intervenção pública mais tradicional, mas que correspondam já a políticas com um grau de consolidação que possibilite a aplicação da equação TPP. Por outras palavras, domínios que estejam para lá do paradigma das infraestruturas e que prefigurem novos padrões de afetação de recursos públicos. Em nosso entender, inovação e cultura preenchem perfeitamente esse critério. Podem ainda ter sido atingidos pela deriva infraestrutural, mas a sua sustentabilidade futura estará claramente para além dessa deriva.
Em segundo lugar, optámos por políticas públicas que correspondem a domínios temáticos nos quais seja possível reconhecer a já mencionada convergência de descoberta do território por parte de disciplinas teóricas fundamentadoras do exercício dessas políticas. A inovação e a cultura respondem positivamente a esse critério. A inovação e a cultura são hoje matéria de convergência e de fertilização cruzada entre disciplinas como a economia do crescimento, do conhecimento e da inovação, a geografia económica, as ciências da organização e em todas elas, por via da formação do conhecimento e da sua relação com o território (conhecimento analítico, sintético e simbólico), as políticas públicas encontram hoje fundamentos e principalmente fontes de inovação na sua própria conceção. A inovação envolvendo mais a interação do território com atividades produtivas em que a formação de conhecimento analítico (biotecnologias e química por exemplo) e sintético (engenharias, por exemplo) e a cultura mais associada ao conhecimento simbólico e suscitando a questão fascinante de saber se o digital substituirá algum o dia o “face to face” na criação desse conhecimento projetam futuro para a abordagem da TPP.
Finalmente, porque a TPP na inovação e na cultura suscita o elemento central da equação relacionado com a existência de territórios pertinentes. Mostraremos que inovação e cultura apelarão a territórios pertinentes de diferente escala e que, em termos de governança, se deparam nos territórios concretos com quadros administrativo-institucionais com grau muito diferenciado de existência e de consolidação.
Pode assim dizer-se que inovação e cultura, estabelecem hoje inter-relações profícuas no contexto da evolução da sociedade do conhecimento, seja nos processos reais de desenvolvimento dos territórios ou das cidades, seja no campo político. Apesar das sinergias crescentes sobre os objetivos e âmbitos das políticas orientadas para cada um destes domínios, as condições concretas da sua territorialização mantém-se diversas, questão que implica analisar de forma aprofundada.

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