Desde a passada quinta-feira no Quadratura do Círculo
até hoje, passando pelas crónicas de Vasco Pulido Valente (VPV) e de José Pacheco Pereira (JPP) no Público e pelo Bloco Central na TSF, há material
relevante que baste para refletirmos sobre o significado da querela interna do
PS, o qual transcende em muito os muros desta organização para se transformar
numa questão eminentemente nacional e bem reveladora das fragilidades do nosso
sistema democrático.
JPP foi primeiro estudioso em Portugal a sublinhar
as grandes transformações observadas nas organizações partidárias com espaço na
governação. Fê-lo não só com base na sua capacidade de análise, mas sobretudo
com a possibilidade de a combinar com uma experiência e vivência de uma
concelhia do PSD e raras vezes essa combinação é possível, daí a sua contundência.
E o principal elemento dessa transformação foi a emergência nas organizações
partidárias de uma dinâmica meramente endógena, sem qualquer recetividade a estímulos
exógenos. Dinâmica endógena alimentada sobretudo pela possibilidade do partido
assegurar trajetórias de vida e de subsistência sem passar por qualquer inserção
profissional na vida ativa e pela capacidade prodigiosa de distribuição de benesses
e de outras mordomias de acesso ao poder. À medida que as forças da autossustentação
dominaram a cena, tanto mais acentuada se tornou a sua força, mais provável se
tornou a bondosa aprovação ou simplesmente um encolher indiferente de ombros
dos que mantiveram vida partidária mas dela não dependiam para se afirmar na
sociedade. Essa cumplicidade mede-se e alimenta-se dos momentos- chave em que é
preciso ir a votos. Afinal, é sempre necessário organizar os tais almoços e
jantares, compor as manifestações, simular uma dinâmica de rua, preencher as
manchas de um pavilhão ou de uma sala, desfraldar algumas bandeiras, apenas
para televisão ver. Ora, esse trabalho é por muitos entendido como
desprestigiante ou mesmo sujo, mas tem de ser feito e alguém tem de o
assegurar. E com isto se alimenta a tal dinâmica endógena. É claro que de vez
em quando entram na cena alguns independentes. E aqui como todos conhecemos há
os independentes que ficam sempre bem como ramalhetes decorativos (que nunca
percebi bem porquê se apresentam como conselhos de sábios …) e há os que também
aspiram a algum exercício do poder. A experiência mostra que são estes últimos
os melhor compreendidos e respeitados, porque se movimentam no mesmo
comprimento de onda, falam a mesma linguagem, partilham os mesmos códigos e por
isso garantem uma mais eficaz perspetiva de controlo às tais máquinas endógenas.
JPP tem razão em assinalar que esta transformação
de grau é das duas últimas décadas e VPV é lúcido acentuando que essa
transformação esbateu fortemente as diferenças entre “as três seitas do arco
governativo”.
Se quisermos reconstruir a reatividade “pavloviana”
de António José Seguro e do seu grupo mais próximo nas duas últimas semanas,
aliás preparada no tempo com o “bunker estatutário” que Seguro construiu nas
barbas indiferentes de todo o partido, ela espelha bem a reação à flor da pele
das tais forças internas que vêm ameaçada a sua reprodução e a sua capacidade
distributiva dos mecanismos do poder. Alguém recordou que foi Marcelo Rebelo de
Sousa quem no seu comentário de domingo trouxe a terreiro o autêntico golpe estatutário
do PS e que o próprio AJS veio a público responder ao comentador. Não me
recordo de grande agitação no PS por causa dessa questão.
Mas onde está a tragédia de tudo isto?
A tragédia ou ópera bufa consoante os gostos está
na desgraça dos primeiro-Ministros e outros atores da governação tenderem cada
vez mais com maior probabilidade a serem provenientes dessas forças endógenas
partidárias. Sabe-se que, por mais pose de estado e gravata azul que sejam
assumidas, é gente que não está preparada para os desafios da governação real e
que tenderá nesta última a fazer refletir a aprendizagem adquirida nesses
mecanismos.
Assim, por mais discutíveis que sejam as consequências
finais da decisão de avançar de António Costa, devemos-lhe Caro António a
possibilidade de ver como reage AJS em situações de stresse, neste caso partidário.
Tais situações não simulam seguramente os desafios da governação, mas são bem
mais importantes do que qualquer base programática que o próprio nos possa
apresentar. E o que apareceu à superfície, claro e cristalino, não é
seguramente o primeiro-Ministro que desejaria que se perfilasse para afastar
esta tralha do poder.
A situação de facto alterou-se e muito. Há uns
meses atrás, a convicção era a de que AJS não era a melhor alternativa, mas
face ao que era necessário fazer desandar, merecia o benefício da dúvida. Hoje,
com a mudança de cena, o ator revelou-se e correr o risco de apoiar essa
experimentação é já proibitivo.
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