sábado, 28 de junho de 2014

DEGENERESCÊNCIAS PARTIDÁRIAS



Desde a passada quinta-feira no Quadratura do Círculo até hoje, passando pelas crónicas de Vasco Pulido Valente (VPV) e de José Pacheco Pereira (JPP) no Público e pelo Bloco Central na TSF, há material relevante que baste para refletirmos sobre o significado da querela interna do PS, o qual transcende em muito os muros desta organização para se transformar numa questão eminentemente nacional e bem reveladora das fragilidades do nosso sistema democrático.
JPP foi primeiro estudioso em Portugal a sublinhar as grandes transformações observadas nas organizações partidárias com espaço na governação. Fê-lo não só com base na sua capacidade de análise, mas sobretudo com a possibilidade de a combinar com uma experiência e vivência de uma concelhia do PSD e raras vezes essa combinação é possível, daí a sua contundência. E o principal elemento dessa transformação foi a emergência nas organizações partidárias de uma dinâmica meramente endógena, sem qualquer recetividade a estímulos exógenos. Dinâmica endógena alimentada sobretudo pela possibilidade do partido assegurar trajetórias de vida e de subsistência sem passar por qualquer inserção profissional na vida ativa e pela capacidade prodigiosa de distribuição de benesses e de outras mordomias de acesso ao poder. À medida que as forças da autossustentação dominaram a cena, tanto mais acentuada se tornou a sua força, mais provável se tornou a bondosa aprovação ou simplesmente um encolher indiferente de ombros dos que mantiveram vida partidária mas dela não dependiam para se afirmar na sociedade. Essa cumplicidade mede-se e alimenta-se dos momentos- chave em que é preciso ir a votos. Afinal, é sempre necessário organizar os tais almoços e jantares, compor as manifestações, simular uma dinâmica de rua, preencher as manchas de um pavilhão ou de uma sala, desfraldar algumas bandeiras, apenas para televisão ver. Ora, esse trabalho é por muitos entendido como desprestigiante ou mesmo sujo, mas tem de ser feito e alguém tem de o assegurar. E com isto se alimenta a tal dinâmica endógena. É claro que de vez em quando entram na cena alguns independentes. E aqui como todos conhecemos há os independentes que ficam sempre bem como ramalhetes decorativos (que nunca percebi bem porquê se apresentam como conselhos de sábios …) e há os que também aspiram a algum exercício do poder. A experiência mostra que são estes últimos os melhor compreendidos e respeitados, porque se movimentam no mesmo comprimento de onda, falam a mesma linguagem, partilham os mesmos códigos e por isso garantem uma mais eficaz perspetiva de controlo às tais máquinas endógenas.
JPP tem razão em assinalar que esta transformação de grau é das duas últimas décadas e VPV é lúcido acentuando que essa transformação esbateu fortemente as diferenças entre “as três seitas do arco governativo”.
Se quisermos reconstruir a reatividade “pavloviana” de António José Seguro e do seu grupo mais próximo nas duas últimas semanas, aliás preparada no tempo com o “bunker estatutário” que Seguro construiu nas barbas indiferentes de todo o partido, ela espelha bem a reação à flor da pele das tais forças internas que vêm ameaçada a sua reprodução e a sua capacidade distributiva dos mecanismos do poder. Alguém recordou que foi Marcelo Rebelo de Sousa quem no seu comentário de domingo trouxe a terreiro o autêntico golpe estatutário do PS e que o próprio AJS veio a público responder ao comentador. Não me recordo de grande agitação no PS por causa dessa questão.
Mas onde está a tragédia de tudo isto?
A tragédia ou ópera bufa consoante os gostos está na desgraça dos primeiro-Ministros e outros atores da governação tenderem cada vez mais com maior probabilidade a serem provenientes dessas forças endógenas partidárias. Sabe-se que, por mais pose de estado e gravata azul que sejam assumidas, é gente que não está preparada para os desafios da governação real e que tenderá nesta última a fazer refletir a aprendizagem adquirida nesses mecanismos.
Assim, por mais discutíveis que sejam as consequências finais da decisão de avançar de António Costa, devemos-lhe Caro António a possibilidade de ver como reage AJS em situações de stresse, neste caso partidário. Tais situações não simulam seguramente os desafios da governação, mas são bem mais importantes do que qualquer base programática que o próprio nos possa apresentar. E o que apareceu à superfície, claro e cristalino, não é seguramente o primeiro-Ministro que desejaria que se perfilasse para afastar esta tralha do poder.
A situação de facto alterou-se e muito. Há uns meses atrás, a convicção era a de que AJS não era a melhor alternativa, mas face ao que era necessário fazer desandar, merecia o benefício da dúvida. Hoje, com a mudança de cena, o ator revelou-se e correr o risco de apoiar essa experimentação é já proibitivo.

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