segunda-feira, 9 de junho de 2014

SHORTER E O IMPÉRIO DO SENTIR



Foi um privilégio ouvir o mítico saxofonista Wayne Shorter e os outros três músicos enormes que integram o seu Quarteto desde 2001 – Danilo Pérez ao piano, John Patitucci no contrabaixo e Brian Blade na bateria – num concerto soberbo e arrepiante, seguramente um dos grandes acontecimentos musicais do ano que quase classificaria de histórico, este domingo à noite numa cheia sala principal da Casa da Música.

A base do alinhamento assentou no disco fundamental do quarteto, datando já de 2005 (“Beyond the Sound Barrier”), sem prejuízo do “contínuo criativo” de que o líder se reclama cada vez mais intransigentemente: “Eu estou numa altura em que digo apenas: para o diabo com as regras [o grupo já não ensaia e os seus elementos vivem longe uns dos outros]. É a minha forma de fazer música agora. Com esta idade [Wayne já completou 80 anos], não tenho nada a perder. Lanço-me ao desconhecido.”

Wayne é um dos últimos gigantes vivos do jazz surgido e esculpido durante décadas do século XX. Quatro marcos definem o essencial da sua carreira: começou a tocar com o legendário baterista Art Blakey (Jazz Messengers) em 1959, fez parte do segundo grande quinteto de Miles Davis (com Herbie Hancock e Ron Carter, nomeadamente) nos anos 60, passou por experiências várias sem nunca prescindir de uma atividade de solista no “Blue Note” e foi ainda fundador do grupo de fusão Weather Report durante os anos 70.

Shorter é também um praticante budista e parece estar coerentemente em paz consigo próprio e com a vida e a “maleabilidade do tempo”, como decorre da sua recentíssima entrevista à “Electronic Beats Magazine” – “O Art dizia: ‘Originalidade é o que o jazz é’. Sabe, originalidade é não copiar. Portanto, o Art dizia: ‘Jazz significa tentar não copiar ou tentar não repetir algo do passado – trazer algo das próprias entranhas’. Gosto da frase ‘o mistério de nós’. Não apenas como músicos, mas também como seres humanos estamos nesta aventura chamada vida. Eu digo sempre que a vida é a aventura definitiva do mistério de nós. Eu sei que há pessoas que pensam que ‘definitiva’ significa ‘fim’. Mas eu penso que ‘definitiva’ significa ‘interminável’. Sem muros, sem fronteiras. A questão é: como é que se toca isso?”

Prosseguindo: “Se o jazz soar como jazz torna-se como uma estátua, imóvel. Mas a intenção do jazz é andar para a frente. Eu desafio-te a seguir para diante. Exatamente o que muitas vezes é esquecido. Fazer o que fazemos é um risco. Mas é, primeiro e antes de tudo, uma oportunidade. Durante a nossa vida de ser humano, temos que sair do armário quando a barra está limpa. É isso que estamos todos a fazer. Veja, nós não estamos a tocar música – estamos a dialogar com a vida. Há uma diferença! Estamos a ter um diálogo com o inesperado. Se nos é permitido assumir riscos no palco, tudo se reconduz a uma definição de fé. Sabe que as pessoas têm tentado definir a palavra fé há séculos? E ainda andam a tentá-lo! O que é fé? Alguns dizem que é algo que se adapta. Outros dizem que é algo que não se vê, que a fé é a evidência de algo não visto. Mas, para mim, essas perspetivas são limitadas. Se me perguntar, a fé é não temer nada. Quando se toca música, quando se embarca num avião. Tornamo-nos destemidos.”

Inesquecível...

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