terça-feira, 29 de julho de 2014

A DÍVIDA ARGENTINA E OS SEUS ABUTRES


Hoje é um dia D para a Argentina, ainda a braços com a saga das múltiplas e variadas sequelas do seu default de 26 de dezembro de 2001 (momento em que o governo decidiu suspender os pagamentos da dívida pública com que se tinha comprometido, num montante próximo de 100 mil milhões de dólares), o maior incumprimento à escala internacional até à data.

É sabido, e em síntese: (i) que o país tentou subsequentemente refinanciar a sua dívida e que foi a recusa do governo americano que impediu a criação de um mecanismo de reestruturação nos termos que eram propostos; (ii) que a ocorrência de alguma recuperação económica permitiu ao país ter condições para, primeiro em 2005 e depois em 2010, oferecer aos credores uma troca de obrigações, ainda que com uma dose significativa de perdas (haircut) para estes; (iii) que foram mais de três quartos e mais de 90%, respetivamente, os credores que aceitaram proceder à referida troca (com uma perda avaliada em 70% do investimento inicial); (iv) que, neste período (concretamente em 2006), o país se libertou ainda da dívida que detinha junto do FMI (9,6 mil milhões); (v) que, em maio último, o país tinha chegado a acordo com o Clube de Paris com vista ao pagamento em cinco a sete anos da sua dívida remanescente junto de dezasseis países membros do referido Clube.

Nos termos atrás explicitados, tudo parecia apontar para uma gradual normalização das relações financeiras internacionais da Argentina. Só que falta um detalhe não despiciendo na história acima brevemente contada: o facto de alguns fundos de investimento – liderados pelo NML Capital Limited, um fundo com sede nas Ilhas Cayman e detido pela empresa Elliott Management Corp do milionário Paul Singer – se terem recusado a aceitar qualquer reestruturação da dívida argentina que possuíam (num montante estimado em 1,33 mil milhões de dólares) e, através de uma batalha nos tribunais americanos, terem finalmente logrado chegar ao atual bloqueio da situação. Ao que parece, o fundamento essencial da sua atuação – muito assente também numa enorme capacidade de lóbi junto do Congresso – decorre de uma eventual incúria jurídica da parte argentina, traduzida em os tribunais norte-americanos se arvorarem assumidamente em donos de uma total jurisdição sobre as disputas associadas à emissão de dívida pública argentina; ou seja, e em termos simplificados, tudo se reconduz ao facto de, aquando das reestruturações efetuadas em 2005 e 2010, não ter sido devidamente salvaguardada a obrigatoriedade de os credores não signatários serem forçados a aceitar as mesmas condições dos restantes.

Os fundos em questão são conhecidos na gíria por “fundos-abutres”, dado que baseiam a sua atividade na compra de dívida de países em dificuldades de cumprimento ou já em incumprimento a preços muitos inferiores ao seu valor originário e na expectativa de conseguirem um recebimento capaz de lhes proporcionar um ganho substancial – no caso vertente, o NML pagou 49 milhões por uma dívida de valor nominal equivalente a 220 e atualmente valorizada em 830.

A questão que agora está colocada decorre da rejeição pelo Supremo Tribunal dos Estados Unidos de um recurso argentino contra uma decisão do juiz Thomas Griesa (uma figura curiosa e a que voltarei noutra ocasião) impedindo o reembolso de um cupão de 832 milhões de dólares (devido a 30 de junho de 2014) aos credores com haircut e defendendo o pagamento prévio dos credores que não participaram na reestruturação da dívida. O enorme imbróglio assim gerado está em vias de atingir um ponto culminante, já que termina precisamente amanhã o período de graça de um mês associado àquele pagamento (devido a 30 de junho de 2014) e está hoje a acontecer uma última e definitiva reunião entre as autoridades nacionais e o mediador (Daniel Polack) apontado pela justiça norte-americano no quadro da ação levada a cabo por aqueles fundos.

Desta reunião resultará ou a possibilidade de algum retorno à normalidade ou uma inevitável rendição argentina a um quarto incumprimento desde 1982. Sendo que o governo se recusa a qualquer negociação direta com tais credores recalcitrantes, que acusa de especuladores vorazes e politicamente enche de maldições, ao mesmo tempo que insiste em que estará a cumprir o que lhe é exigível depositando atempadamente os montantes devidos no banco intermediário (Bank of New York Mellon) e independentemente de a justiça continuar a não permitir que este proceda legalmente à respetiva transferência complementar para a conta dos obrigacionistas. Um assunto muito complicado e cheio de ensinamentos...


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