O El País semanal on line publica hoje uma crónica reportagem de Guillermo Altares, designada de El primer muro de occidente, cujo tema
central é o muro de Adriano (imperador romano 76-138 da nossa era), situado no
norte de Inglaterra, e o que ele representa.
O tema é aliciante, devido sobretudo à
ambivalência do seu significado, ainda hoje amplamente discutido na
investigação histórica como aliás a crónica de Altares o demonstra, com uma bem
documentada série de referências a ensaios e outras pesquisas bem recentes. E
foi essa ambivalência de significado que me despertou a curiosidade e a
reflexão.
A primeira interpretação possível é a que é
construída a partir do sentido literal de muro. Um instrumento de separação,
neste caso presumivelmente a tentativa de marcar uma diferença entre Roma e um
outro mundo. É a interpretação que desperta mais o reporte aos muros da nossa
contemporaneidade, como os muros físicos de Israel para impedir a contaminação
com os palestinos, os arames farpados e valas do sul dos Estados Unidos na
fronteira com o México, as desesperadas tentativas de controlar a entrada de
sub-saharianos em Espanha ou os muros de classe nas sociedades mais desiguais.
Mas investigação histórica e arqueológica mais recente, citada pelo artigo, encarrega-se
de desconstruir essa interpretação, pois o muro de Adriano não corresponde a
nenhuma fronteira (todo ele se inscreve na Inglaterra) e as identidades
nacionais ainda não estavam ali implantadas. Aliás, as escavações no seu curso
têm conduzido precisamente à interpretação oposta, a da multiculturalidade.
Depois, há elementos e vestígios que indiciam que o muro não tinha
características plenas de infraestrutura de defesa, sendo provavelmente mais
uma espécie de fonte de controlo comercial de movimentos de pessoas e
mercadorias (portagens de outros tempos).
E em torno destes vestígios tem vindo a ser
construída uma outra interpretação, a de símbolo de poder romano,
designadamente junto das populações habitando nas cercanias da sua implantação.
Também aqui os romanos teriam antecipado o uso da arquitetura como marcação de
uma imagem de poder. E não deixa de ser curiosa a interpretação de um
arqueólogos (Andrew Birley) que se ocupa presentemente das escavações em torno
de aglomerados urbanos que se situavam como cidades de retaguarda em relação ao
muro de Adriano. O muro dir-nos-ia que “a ocupação militar não é nunca uma
solução, não sendo possível impor uma ideologia apenas com a força”, princípio
que é hoje frequentemente subvertido.
Curiosamente, a metáfora do muro como separação é
hoje, no Público, indiretamente invocada, por um historiador, Rui Tavares
(Livre), cada vez mais sensato e confiante porque a desagregação do Bloco está
a dar-lhe razão, quando refere o drama (ou tragédia?) da esquerda, alimentado
pela divisão entre a esquerda que só pensa em governar e a que só pensa em não
governar. Rui Tavares propõe uma solução que ele designa de chave: “precisamos agora de uma esquerda que, em vez de só querer
governar ou só querer não governar, queira saber porquê governar e sobretudo
para quê governar.”
Pois é, mas como o meu colega de blogue tem
repetidas vezes assinalado, o pior é que o diabo está nos detalhes. Sabemos a
onde queremos chegar, a uma esquerda que seja capaz de se interrogar sobre as
razões que a conduzam à governação e também do que pretende atingir com essa
governação. Mas toda a estratégia tem uma transição e uma estratégia de
transição implica saber como transformar o muro que hoje temos, entre os que só
pensam em governar e os que dela fogem com medo da contaminação (melhor dizendo
com a perceção de que a capitalização do voto de protesto ficará para os
outros). Dizia o colega Guilherme Costa na mesa do almoço em que estive na
Árvore para discutir algumas ideias com António Costa que é na governação que
se constrói a coerência de uma transição e não com princípios programáticos ou check
lists de prioridades antes dela se iniciar. É verdade que a coerência de
uma estratégia se pode construir com um padrão coerente e consistente de
decisões ao longo do tempo, dispensando a sua formalização a priori. A
análise das empresas e de algumas organizações e a própria literatura do
planeamento estratégico (Mintzberg) assim o documentam. Mas o problema
subsiste. Como fazer a transição? Como desconstruir o muro (histórico, de
culturas políticas, de personalidades e primadonas, de capacidades desiguais de
assumir riscos) que circunscreve as duas (estarei a ser bondoso!) esquerdas?
Acelerando os fluxos de desagregação das forças mais cristalizadas? Será que as
eventuais aproximações de Ana Drago e Daniel Oliveira ao Livre e a um eventual
governo PS liderado por António Costa cumprem esse modelo? Pode ser que sim mas
não esperem idênticos fluxos a partir de um renovado na idade mas não
necessariamente no pensamento PCP. As rochas não se desagregam assim com essa
facilidade.
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