segunda-feira, 14 de julho de 2014

MARIA JOÃO E O CANTARINHO



O último post do meu colega de blogue sobre Maria João Rodrigues (MJR) e a sua escalada para um eventual posto de Comissária Europeia (estima-se que não por uma simples questão de género!) suscitou-me algumas lembranças, algumas reflexões de crónicas de má língua e mal dizer, enfim um domínio e um registo que não tenho explorado muito neste espaço e que é o da análise de personalidades e da sua trajetória pública (no sentido de trajetória de exposição no espaço público).
Pois quando me foco na personalidade lembra-me alguém que transporta o cantarinho até à (ou da) sua fonte desejada, com desvelo e cuidadinho, nos mais difíceis e turbulentos caminhos, pejados de escolhos e dificuldades, com os interlocutores mais diversificados, sem entornar pinga de água e sem danificar o recipiente.
Não é uma personalidade qualquer que convence patronos como António Guterres, Delors, Juncker, não sei se Durão Barroso e mais recentemente António José Seguro (não me pronuncio sobre a escala e hierarquia dos patronos). E que os convenceu parece não haver dúvida. Mas até agora o desvelo e cuidadinho com que o cantarinho era manejado sobrepunha-se claramente à perceção da fonte para a qual (ou da qual) se destinava. Ora de acordo com as últimas notícias, entrevistas e outras fontes de informação, MJR parece ter mudado de agulha e, provavelmente não sentindo a mancha de apoios que desejaria ou talvez antes com confiança certificada, aparece agora a abandonar o “low profile” do recato do relacionamento com os seus patronos e a proclamar aos quatro ventos as suas competências para o lugar de Comissária, pelo menos com quatro pastas possíveis. Este registo contrasta com clareza com, por exemplo, a sua estóica coordenação do Plano Tecnológico na qual, sem orçamento próprio e apenas focada na coordenação entre financiamentos de outros ministérios, aguentou poderosos ministros do PS (dispenso-me de referir quais) que lhe diziam firmemente mas sem azedume, Minha Senhora sem orçamento próprio, nem pense em interferir nas minhas decisões. E o cantarinho, mesmo nessas penosas circunstâncias, não se partiu.
Desde os tempos idos em que MJR se notabilizou com o seu conhecimento dos sistemas de emprego e das relações interindustriais, que trouxe alguma novidade à análise empírica da economia portuguesa e ao que poderíamos designar de visão estrutural do mercado de trabalho (Prémio Gulbenkian de Ciência e Tecnologia em 1986), o manejamento do cantarinho levou-a a enveredar por um alinhamento demasiado evidente, para meu gosto, com a retórica (por vezes insuportável) do jargão comunitário. E se MJR terá um lugar indiscutível nas bibliografias sobre a economia portuguesa será por certo devido à sua matriz inicial de pensamento e produção e não seguramente sobre os materiais da Estratégia de Lisboa, da sociedade do conhecimento ou de outros assuntos que tais, embora as tenha publicado na Edward Elgar o que não é coisa pouca. E mesmo a sua voz contra a orientação de política macroeconómica seguida pela União Europeia não ficará certamente como exemplo de contundência.
E como registo de memórias não posso deixar de comentar uma experiência que já se vai perdendo nas estantes ignoradas do tempo. Em 1985, há tanto tempo, coordenei para o Instituto Damião de Góis, então ligado à Presidência do General Ramalho Eanes, um dos estudos pioneiros sobre economia subterrânea em Portugal, designado de A ECONOMIA SUBTERRÂNEA E O EXERCÍCIO DA POLÍTICA ECONÓMICA EM PORTUGAL. Para além da introdução e três capítulos que elaborei, a obra integrou capítulos elaborados por economistas por mim convidados, nos quais se integravam nomes como António Oliveira das Neves, Manuel Mira Godinho, Maria João Rodrigues, Norberto Rosa e Nuno Ribeiro da Silva. MJR tinha então uma abordagem curiosa à estimativa da economia subterrânea comparando informação censitária com os quadros de pessoal do Ministério do Trabalho, estimando depois a partir dessa diferença a massa de produto envolvido com determinados pressupostos de produtividade do emprego.
A organização da obra contemplava uma introdução por mim redigida, onde no texto e na própria página de rosto da publicação constava a rigorosa identificação dos autores e os capítulos pelos quais eram responsáveis. Compreensivelmente, ninguém questionou esta metodologia de apresentação, aliás comum em obras desta natureza. Pois MJR chagou-me (e foi nisso bem sucedida) a paciência para no seu capítulo e para além do material de apresentação constar uma identificação minuciosa do seu contributo e autoria desse capítulo. Um simples fait-divers? Ou talvez um traço estrutural?

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