“Esta não lembrava ao careca” é uma máxima
popularizada pelo inconfundível Marcelo Rebelo de Sousa quando se tem que
referir no seu comentário de domingo a alguma coisa ou decisão com a qual não
concorda mas que, com outros valores na balança (o que é muito comum nos
comentários de MRS se estiverem atentos), tem de ser rapidamente despachada
para não se comprometer em excesso nem produzir crítica virulenta.
Ora, com o retintamente calvo novo Presidente do
BES Vítor Bento a ter que meter as mãos na trampa em que se transformou a
relação entre BES e GES, começando por ter de publicar contas com as quais não
pode responsabilizar-se a anunciar ao mercado prejuízos de tal dimensão e
explicações tão incómodas, a expressão que emerge no meu vocabulário é que isto
“não lembraria ao careca”.
Provavelmente nunca saberemos se Vítor Bento com
a sua experiência terá ou não antecipado o que iria encontrar debaixo dos
tapetes das decisões comprometidas e inquinadas destes CEO bancários e sua corte
de administradores. Cá por mim, sem experiência destas andanças e apenas com
faro de leitor atento, sempre intui que o Banco de Portugal (o meu amigo Carlos
Costa que me perdoe) estava a ser demasiado confiante “na informação
disponível” para assegurar que o contágio das malfeitorias e imprevidências de
gestão do GES e suas ramificações para o BES estava contido e que o Banco tinha
almofada suficiente de recursos internos para acomodar tal exposição. Quando
uma determinada organização, financeira ou não isso não importa, é dominada e
se guia pelo “crony capitalism”, a base moral das decisões escapa
seguramente a um regulador que se guia por critérios de decisão racional.
Assim, não me espanta que, mesmo sob pressão de uma maior vigilância por parte
da CMVM e perante prescrições específicas do regulador Banco de Portugal, a
administração do BES se tenha aberto ao contágio do grupo não financeiro e à
possibilidade do banco funcionar como reduto salvador da desagregação anunciada
do grupo familiar, assumindo deliberadamente o incumprimento. Numa organização
dominada pelos valores “crony”, a exposição é endógena, intestina e, em
ambiente de desagregação e desmoronamento, a racionalidade é simplesmente a de
tapar o furo mais imediato. Do que se conhece, e Daniel Deusdado tem no Jornal de Notícias uma boa crónica sobre o tema, o exemplo da triangulação
BES-GES-Tranquilidade é inequívoco desta “racionalidade” em tempos de
desmoronamento.
Toda esta trampa que salta de debaixo dos tapetes
das salas de fino recorte conservador produz uma tragédia a que tendo a chamar
a tragédia da morte das narrativas. Mas que narrativas?
Em primeiro lugar, um tiro de morte na narrativa
da purga salvadora que teria sido a austeridade e na sustentabilidade e
consistência do ânimo da recuperação económica que estaria a ocorrer, apesar
dessa penosa austeridade. A exposição do sistema de PME nacionais aos meandros
da tóxica ligação BES-GES é, por demais evidente, não só devido à profunda
inserção do BES no mercado de crédito às PME, nas também devido ao facto de
muitos dos empresários de PME estarem agora a arder com a má aplicação de
fundos em produtos BES, fundos que foram extraídos à capitalização necessária
dessas empresas. Aliás, não será por acaso que o ministro Pires de Lima tem
andado tão caladinho. É penoso ver imagens passadas do antecessor de Pires de
Lima, Álvaro Santos Pereira, a deliciar-se com o “primeiro grande projeto de
investimento pós crise, o Comporta Dunes de 5 estrelas.
Em segundo lugar, a queda do GES e suas tramas de
ligação ao BES é também a morte trágica da narrativa da modernização infraestrutural
do País, tão apregoada pelo Governo de Sócrates e da qual o BES foi um grande aliado.
A não sustentabilidade dessa modernização emerge agora de forma crua.
Quando o grande banco do regime se desmorona, é
também o regime que é questionado.
Face ao que o estava oculto por debaixo dos
tapetes da decisão executiva do BES (e que certamente nos vai continuar a
surpreender), gostaria de conhecer agora o que continuam a pensar os que se
agastaram com a justiça portuguesa por atacar os poderosos quando apenas se
tornam fracos. Seria interessante ver um por um que tipo de relações diretas ou
indiretas tais personalidades ou jornalistas tinham com o BES ou com o grupo
Espírito Santo. O charme discreto da teia de interesses terá seduzido muita
gente. Talvez fosse melhor focarem-se noutros centros de influência.
Aaaah, que saudades desta crónica...
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