quarta-feira, 2 de julho de 2014

UMA PRECIOSIDADE SOBRE O PODER



A crónica regular de Juan José Millás no suplemento do El País de domingo é de leitura obrigatória e faz parte dos meus rituais de fim-de-semana. Trata-se de um texto curto focado numa imagem.
A crónica deste domingo é uma preciosidade e merece citação completa:
Só temos de observar o rosto do senhor da esquerda, filho da senhora da direita, para pressentir que está a passar mal, muito mal. Perdeu os seus melhores anos em fantasias loucas, como a de converter-se no tampax da sua noiva de então, Camilla Parker Bowles, e vê-se agora sem ofício nem benefício, dependendo das mudanças de humor da mamã, que lhe retira honras e atos oficiais, e que lhe tem dito que terá de passar por cima do seu cadáver para aceder ao trono. O seu gesto causa desassossego, bem como a sua postura de desalento, com essa mão apoiada no punho de um sabre absurdo, que sustenta a sua paixão, como se tivesse deixado de ser o símbolo que noutro tempo representava a sua virilidade. Dá a impressão de que, mais do que carregar as medalhas e as condecorações que apertam o seu peito, são elas que o carregam. Até o uniforme parece estar um pouco grande, como se tivesse começado a mingar dentro dele, dentro desse abismo no qual a cabeça poderia perder-se. Um nem-nem desesperado, enfim, um rapaz que nem estuda nem trabalha. Dá pena vê-lo definhar desse modo ao mesmo tempo que a rainha mãe aparece mais saudável e vigorosa do que nunca. O peso da coroa, longe de a abater, dá-lhe asas, eleva-a, como um desses refrescos mineralizantes que se tomam ao sair da sauna, ou depois de um esforço físico notável ou durante uma diarreia. Será que a anciã rejuvenescida não se dá conta de que o seu rebento, o jovem ancião da foto, precisa de um pouco dessa poção? Até onde nos desumaniza o poder?”
Uma deliciosa reflexão sobre o poder sobre uma imagem que poderíamos contrapor à do abraço entre Juan Carlos e Filipe, seu filho.

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