sábado, 19 de julho de 2014

O DESCAMINHO DO EXCEDENTE



Uma conversa de fim de tarde de sexta-feira com um colega com muita má impressão (testada e fundamentada) sobre as más práticas do sistema financeiro antecipou curiosamente um dos grandes temas dos semanários.
Na verdade, na sequência de toda a série de aldrabices, vigarices, usurpação de direitos mais elementares dos clientes, má e insidiosa governação ao nível dos conselhos de administração, relações leoninas entre a atividade de crédito dos bancos e a compra mais ou menos forçada ou pelo menos fortemente estimulada de papel comercial de “confiança”, concessões de crédito a empresas do grupo familiar, os casos do BES e do GES destapam toda a profundidade do “crony capitalism” à portuguesa como o tenho vindo a designar.
E já não me convence aquela tirada dos jornalistas económicos portugueses dizendo muito convencidos que o BPN e BPP, por um lado e o BES, por outro, são diferentes porque os primeiros são um caso de polícia. E o BES o que é? Dou para mim a pensar como é que esta trama de família, requintada talvez, conseguiu influenciar a governação até ajudar a quedas de governo. Como não poderia deixar de ser gerindo os diferentes layers de acesso aos negócios preferenciais, do bolo chorudo ao prato de lentilhas e à simples partilha do glamour dos poderosos.
Mas não é essa a questão que me interessa hoje aqui desenvolver. O que é relevante assinalar é a relação de tudo isto com o modelo de crescimento económico da economia portuguesa das últimas duas décadas claramente dominado pelo setor financeiro, imobiliário e não transacionáveis associados e como é conhecido com desindustrialização precoce, anemia de crescimento, constrangimentos à produtividade, baixa intensidade em conhecimento e inovação.
Ora se é verdade que muito dinheiro tem sido simplesmente torrado em capitalizações à força e em imparidades irrecuperáveis esse dinheiro é proveniente do excedente das duas últimas décadas, excedente que foi desviado de um processo normal de investimento orientado para ramos e negócios com maior impacto na produtividade e na criação de emprego. E o drama está precisamente nesse descaminho do excedente reinvestível. Por isso, a maioria atual deveria estar mais preocupada com os casos do BES, GES e desmandos associados. É que perante a fobia de redução do papel do Estado ao mínimo possível e com tanta falsa esperança no potencial compensatório do setor privado, tudo isto que está a desmoronar-se traduzir-se-á, mais tarde ou mais cedo, em menor libertação de fundos disponíveis para o tal investimento redentor. A narrativa do crescimento é assim fortemente penalizada.

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