quarta-feira, 23 de julho de 2014

A VIOLÊNCIA IMPOTENTE DA ECONOMIA


Já aqui (post de 25 de novembro de 2011) me referi a Michel Houellebecq (MH), um dos grandes escritores deste nosso tempo. Pois desta vez ele não é mais – e já não é coisa pouca, como se verá... – do que o pretexto para uma reflexão sobre o absurdo essencial do mundo contemporâneo ou, dito de outro modo, para a elaboração de um ensaio que, percorrendo a literatura de MH, percepciona criticamente o “económico” e denuncia essa dominante económica que preside à gangrena depressiva das sociedades atuais.

O autor é um economista francês algo atípico que dá pelo nome de Bernard Maris (BM) – professor agregado, conselheiro do Banco de França, jornalista de marcante visibilidade (colaborando em programas televisivos e radiofónicos, com destaque para a “France Inter”, e assinando colunas em muitas revistas e jornais prestigiados, ele que é também o “Oncle Bernard” da “Charlie Hebdo”) e cidadão largamente interventor na coisa pública (é membro do comité científico da “altermundialista” ATTAC e está inscrito no partido ecologista, tendo recentemente andado também na berra por via dos termos do seu anúncio de mudança de posição – de pró para contra – em relação à moeda única europeia, assunto que abordarei em outro post).

Regressemos a BM e MH: a perspetiva adotada por BM é então a de pretender demonstrar que os romances de MH – que “relevam da saúde pública” – possuem “uma inteligência do mundo contemporâneo impregnada de economia”. Citando: “A Possibilidade de uma Ilha, por exemplo, oferece essa terrível visão malthusiana de um mundo devastado, pós-capitalista, em que só uma minoria de privilegiados tem direito a sobreviver no Fim da história. Em Plataforma, a questão é a do útil e do inútil. E os seus poemas tratam do horror do liberalismo económico como os de Baudelaire tratavam do descontentamento e do tédio.” E caberia ainda falar daquele professor de Economia de O Mapa e o Território (“a sua vida profissional podia de resumir-se ao facto de ensinar absurdos contraditórios a cretinos arrivistas”) ou da análise da divisão do trabalho patente nesse livro para reconfirmar que a obra de MH é atravessada por conceitos económicos – ele fala “de concorrência, de destruição criativa, de produtividade, de trabalho parasitário e útil, de dinheiro” e nele está sempre presente “essa musicazinha económica, esse fundo sonoro de supermercado (...) que polui a nossa existência” – mas, acrescenta o economista envergonhado (“a economia atiça perpetuamente o desejo, portanto a insatisfação e a infelicidade” e “a economia é a cinza com que o nosso tempo cobre a sua triste face”), resultando “melhor do que os economistas, porque ele é escritor”.

Trata-se assim, no fundo, de reler MH sob os olhos de um “agente económico irracional” – uma imagem de feliz continuidade em relação ao “homem económico” enquanto “idiota racional” de Sen – marcado pelo desespero perante a substância do mundo que o cerca, bem mais uma extensão mercantil do que uma expressão humana (“o Ocidente acabou por sacrificar tudo [a essa necessidade de certeza racional]: a sua religião, a sua felicidade, as suas esperanças e, em definitivo, a sua vida”). Ou, dito ainda de outra maneira, o próprio amor a que MH aspira (“só [o amor] permite esquecer o consumo, único horizonte possível da nossa atroz sociedade”) como antídoto ao horror económico foi transformado em mercadoria. E, portanto, “do mesmo modo que, lendo Kafka, o leitor compreende que o seu mundo é uma prisão e, lendo Orwell, que o alimento que nele se serve é uma mentira, lendo este aspeto económico de Michel Houellebecq que vou desvendar, saberá – mas já não o sabe no fundo? – que a armadilha que dificulta os seus passos, que o amolece, que o impede de mexer e o torna tão triste e tão tristemente miserável, é de natureza económica”.

Um livro amavelmente dedicado aos economistas que cada vez mais se refugiam na sua confortavelmente imaginária torre de marfim...

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