Na linha do que tem sido toda a sua carreira académica e profissional, Carlos Costa tem tido um desempenho irrepreensível como Governador do Banco de Portugal. E com adicionais e inquestionáveis efeitos positivos no plano do contributo patriótico. Mas poderá esta semana ter cometido o seu primeiro erro, o que é tanto mais de lamentar quanto ocorre em sede essencialmente alheia às altas funções que desempenha.
Na sua habitual coluna no “Expresso” de ontem, Miguel Sousa Tavares (MST) explica e comenta: O governador do Banco de Portugal, Carlos Costa, foi chamado a depor como testemunha no processo que julga a anterior administração do BCP – sob cujas ordens trabalhou entre 2000 e 2004 como diretor da área internacional. Em concreto, Carlos Costa teve de comentar a acusação que a CMVM faz à equipa liderada por Jardim Gonçalves de ter criado dezassete contas em ‘offshore’ que serviam para o banco financiar testas-de-ferro para a compra de ações de próprio banco – assim fazendo subir artificialmente a sua cotação e os próprios resultados do banco, sobre os quais, eles, administradores, depois recebiam prémios de gestão. E o que disse sobre isto o atual governador do Banco de Portugal, o vigilante máximo do sistema bancário? Que ‘o principal objetivo da operação era assegurar o interesse do banco’ e que, para tal, ‘é normal que os bancos emprestem dinheiro para a compra de títulos’ e que ‘não é nenhuma anomalia, neste tipo de operações, não se conhecer os titulares’ das contas beneficiadas. Eis o que dá este sistema de eterna transumância entre a representação de interesse privados e a defesa do interesse público. Ficámos a saber que da próxima vez que ‘este tipo de operações’ acontecer, o governador do Banco de Portugal não tem nada a opor. Aqui está uma coisa que nos deve tranquilizar.”
Não sei se Carlos Costa teria podido evitar esta sua intervenção no chamado “caso BCP” ou se, pelo menos, teria podido fazê-la de forma menos publicamente exposta. Mas teria sido bom que o tivesse podido. Não, obviamente, por qualquer razão imputável ao próprio nem pelos imperativos de consciência que o terão certamente movido, mas sim porque textos como o de MST – ademais publicados em órgão de tão ampla circulação nacional – são nefastos na perspetiva de uma imprescindível estabilização de referências de credibilidade na sociedade doente e sob intervenção externa que é a nossa. O que mais importa, agora, é que o mandato de Carlos Costa – a desenvolver-se, sem mácula de qualquer espécie, naquela direção – prossiga tranquilamente a rota traçada…
ADENDA (2 de Abril às 19,15 horas): pessoa amiga alertou-me, entretanto, para o facto de que não decorria claramente das minhas palavras precedentes o essencial da sólida argumentação produzida por Carlos Costa em tribunal. Entendendo tal remoque como válido e relevante, e não sendo adequado entrar aqui em incursões tecnicamente muito elaboradas, limito-me a reproduzir abaixo parte de um “take” da Lusa (28 de Março às 18,08h) que admito possa preencher, ao menos nos seus principais contornos, a desejada função esclarecedora:
“O antigo diretor da área internacional do BCP e atual governador do Banco de Portugal disse hoje no tribunal que nunca olhou para as 17 'offshore' alvo da acusação da CMVM contra os antigos gestores do banco como um grupo especial.
‘Não havia nenhuma razão para serem tratadas como um pelotão’, afirmou Carlos Costa (…)
Questionado sobre se em algum momento se apercebeu de alguma relação entre estas 17 sociedades do BCP Cayman, o responsável negou, salientando que não tinha esse conhecimento ‘de forma nenhuma’.
E reforçou: ‘Estão a construir um laço de um conjunto de sociedades que não conheço assim, nem hoje, nem na altura’.
O BCP tinha, à data, ‘um modelo linear sequencial’, no qual havia um primeiro escalão, responsável pela originação do negócio, um segundo escalão, que procedia à análise, um terceiro escalão, que fazia a avaliação (era neste patamar que estava Carlos Costa), e um quarto escalão, que tomava a decisão (conselho de administração).
Segundo o testemunho do economista, que tinha a máxima responsabilidade na área de financiamento a sociedades não residentes, os critérios usados para a apreciação das propostas de crédito seguiam ‘os regulamentos aprovados pelo conselho de administração’ do BCP.
‘Em qualquer dessas operações [de financiamento a sociedades não residentes em Portugal], o principal era assegurar o interesse do banco’, frisou, explicando que ‘é normal os bancos emprestarem dinheiro para a compra de títulos’.
De acordo com o seu depoimento, ‘os bancos têm que definir o nível de risco que estão dispostos a tomar face às salvaguardas que têm’, pelo que o empréstimo de dinheiro a estas sociedades 'offshore', cuja gestão discricionária da carteira ficava sob a responsabilidade do BCP ‘eram operações simples’ e comuns de financiamento.
‘Há administrações que dizem ‘entro’ e há outras que dizem ‘não entro’, tudo depende da intenção de participar no risco, e do ambiente existente’, sublinhou Carlos Costa.
‘O único relacionamento que tinha com o conselho de administração era com o Dr. Christopher de Beck, sempre de acordo com os regulamentos’, garantiu.
‘Ser 'offshore' ou não é irrelevante, o que importa [à Direção Internacional] é se é ou não é residente. As legislações são diferentes, mas do ponto de vista da concessão de crédito e de risco é igual’, afirmou.
Carlos Costa salientou que ‘a questão básica é se o cliente tem idoneidade. Tendo, o que interessa é a operação’, enquanto a política de concessão de crédito ‘compete à administração e não ao diretor da área internacional’.”
Espero ter contribuído com esta precisão – designamente estabelecendo uma distinção nuclear entre a regularidade da concessão de crédito e a legalidade da operação – para elucidar devidamente uma questão em que, nunca tendo estado em causa a justeza da intervenção de Carlos Costa no âmbito das suas responsabilidades próprias de então, a opinião pública pode ter sido induzida em erro pelo perigoso simplismo analítico de que por vezes padece MST.
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