quarta-feira, 1 de abril de 2015

A RIQUEZA VERTIGINOSA DO DEBATE AMERICANO




O Economist’s View de Mark Thoma é uma bênção, um verdadeiro bem público. Através da sua consulta e leitura diárias podemos mergulhar na riqueza vertiginosa do debate das ideias económicas nos EUA, envolvendo a academia, os que nela teimam viver abrigados da tentação de se pronunciar sobre a dura realidade das coisas, os que nela vivem mas ousam intervir na opinião pública, o jornalismo especializado, gente da administração e palradores ideológico-doutrinários encartados e de serviço.
Aos que torcem o nariz à eventual leveza dos argumentos que atravessam a blogosfera económica cumpre dizer que a regra mais generalizada é a produção blogueira ter sempre como referencial produção científica de referência, o que significa que a vertigem do debate é hoje incompatível com a velocidade (lenta) a que se publica nas revistas da especialidade.
Esta semana trouxe-nos material que baste, dada a sua riqueza e necessidade de tempo para o percorrer e dele retirar matéria coerente de reflexão para as nossas próprias preocupações.
Ben Bernanke, o último Governador do FED – USA que antecedeu a sensata e paciente Janet Yellen regressou às lides universitárias (Princeton University) como Distinguished Fellow in Residence no Brookings e abre o seu próprio blogue neste espaço institucional e com uma entrada de leão: um post sobre a interrogação que a todos nos assiste, “porque é que as taxas de juro estão tão baixas” e outro post sobre o outro tema de momento nas economias avançadas de mercado, a estagnação secular. Retomando um debate iniciado na conferência de novembro de 2014 do FMI em Washington, na qual Lawrence Summers avançou pela primeira vez com o conceito, o segundo post de Bernanke suscita de Summers a continuidade desse debate e com esta entrada o tema fica substancialmente enriquecido e sobe de nível.
A posição de Bernanke é a de se mostrar cético quanto à possibilidade da política fiscal (sobretudo de investimentos em infraestruturas produtivas de elevado retorno) se substituir indefinidamente à impossibilidade da política monetária ser eficaz com taxas de juro reais negativas. O argumento de Bernanke prende-se com o já elevado nível de dívida de uma economia como a dos EUA. Summers oferece réplica a este argumento com a possibilidade do efeito retorno dos investimentos públicos realizados com taxas de juro nulas ser suficientemente elevado para gerar aumentos de produto que permitam descidas do peso da dívida no PIB. E, neste caso, Summers fala de cátedra, pois o seu modelo de 2012 com Bradford DeLong mostra precisamente isso e por isso considero que se trata da peça mais consistente produzida no pós-crise de 2007-2008.
O segundo contra-argumento de Bernanke prende-se com a necessidade de em contexto de globalização o conceito de estagnação secular dever ser equacionado à escala global. Summers entende a estagnação secular como o resultado de um excesso crónico de poupança desejada em relação ao investimento e nesse contexto esse excesso de poupança tem de ser visto à escala global, pressupondo que o mercado de capitais se mantém global com a sua liberdade de circulação. Neste momento, não há evidências seguras sobre a existência de um excesso de poupança desejada à escala mundial. O que Summers sugere é que essa hipótese pode observar-se em função do comportamento anomalamente elevado de poupança de algumas economias, sobretudo asiáticas e, se tal acontecer, para promover um amplo programa de investimento público e privado a nível mundial será necessário um complexo programa de coordenação de investimentos para o qual não existe modelo de governação pronto a ser implementado. Numa situação dessas, seria trágico fazer concentrar os efeitos de ajustamento nos países deficitários. E o que Summers chama a atenção é para a ineficácia global de resolução do problema à custa de uma guerra de desvalorizações cambiais para suscitar a procura.

A outro nível, o mais recente discurso público de Janet Yellen (Normalizing Monetary Policy: Prospects and Perspectives) suscita amplo e generalizado debate sobre as condições de exercício da política americana nos EUA, agora com a pressão da valorização do dólar face ao euro (mais por força da depreciação deste) a inspirar interrogações sobre o seu real impacto na recuperação da economia americana e a recomendar todas as cautelas à paciente Yellen e ao talvez menos FOMC em matéria de subidas futuras da taxa de referência do FED. O Vice-Presidente do FED Stanley Fisher junta-se à reflexão e, perante a legítima estranheza de Bradford DeLong, Martin Feldstein proclama a necessidade de subida rápida dessas taxas de referência. A peça escrita por Yellen constitui um material pedagógico inestimável, tamanha é a cautela com que a posição ainda dominante no Federal Open Market Committee (FOMC) ajuíza da eventualidade das taxas de referência iniciarem a sua progressão em função de um mais provável aproximação da meta de 2% para a inflação. A atenção milimétrica com que Yellen observa o comportamento do mercado de trabalho e sobretudo as evidências de que continuam a observar-se no mercado de trabalho americano recursos não aproveitados apesar da descida da taxa de desemprego mostram bem a importância de um mandato dual (inflação e desemprego) como o do FED e o comportamento não canónico do mercado de trabalho. É também reconfortante que Yellen esteja consciente dos riscos de uma trajetória similar à dos bancos do Japão e da Suécia que alinharam com um aperto precoce das respetivas economias, precipitando uma paragem precoce da dinâmica económica. Como já aqui referi repetidas vezes é retribuidor observar uma economista de eleição a comandar com rigor e paciência, atenta às evidências e resistindo aos falcões ideológicos, os destinos do mais importante banco central a nível mundial. É também uma oportunidade de nos reencontrarmos com a profissão.

Finalmente, e o seu desenvolvimento terá de ficar para um outro post, o debate sobre a desigualdade está instalado e continua rico de cambiantes. Um trio de economistas, em que de novo surge Lawrence Summers, conclui para um projeto da Fundação The Hamilton Project que as melhorias da educação constituem um fator relevante de redução de desigualdades mas têm limites. Há também que atuar sobre os 1% mais ricos. O debate generaliza-se e até a circunspecta Scientific American dedica um artigo ao tema, mostrando que ele será o tema político do século XXI.

Uma grande saudação ao trabalho insano de Mark Thoma no Economist’s View.

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