Iniciei-me intelectualmente nos temas do crescimento
económico, desenvolvimento e subdesenvolvimento, já há longo tempo para minha
desgraça, com alguns temas de cabeceira e de entrada pelas noites dentro. Nesse
universo de temas apaixonantes e envolventes estava seguramente o do
crescimento versus desenvolvimento, com o qual a literatura do desenvolvimento
e subdesenvolvimento tentava marcar a importância dos sistemas de valores
democraticamente assumidos pelas sociedades e, por essa via, denunciava as
tentações (frequentemente imposições) do mundo ocidental seja de impor
etnocentricamente os valores ocidentais, seja de considerar que o crescimento
económico era por si só capaz de fazer tábua rasa das raízes socioculturais das
sociedades para as quais o crescimento era exportado.
Era o tempo em que o crescimento dourado dos anos
cinquenta e primeira metade dos anos sessenta se tinha finado, que surgiam na
sequência do maio de 68 (não sei o que me parece escrever maio de 68 com letra
pequena) os primeiros sinais da crítica à sustentabilidade (ambiental) desses
modelos de crescimento e que os mais críticos denunciavam que afinal não
tínhamos nada de sólido a oferecer aos não ocidentais. Desde esse tempo que a
memória afetiva considera gloriosos dada a animação, motivação e sentido de
futuro com que se discutia tais temas e dado o ambiente de alguma
“clandestinidade pacífica” com que o tema era discutido em algumas (muito
poucas) cadeiras de fim de curso numa esclerosada Faculdade de Economia do
Porto, então acantonada no sótão da velha Faculdade de Ciências, nos Leões hoje
Reitoria, o debate evoluiu e realizou algumas piruetas inesperadas. O mundo
mudou, na origem do tema e na sua aplicação, as realidades do desenvolvimento e
do não desenvolvimento interpenetraram-se, o crescimento tornou-se mais global
e os que equacionam hoje o seu futuro desenvolvimento fazem-nos com recursos
potenciais mais potentes, o que não significa que o acesso aos mesmos e a sua
absorção estejam garantidos.
Mas a mudança gerada no debate de então constitui uma
pirueta, e que pirueta!
Lant Pritchett, um economista de Harvard na célebre
Escola Kennedy de Administração Pública, é um especialista da economia do
desenvolvimento dos mais prolixos e diversificados que conheço, sobretudo pelo
modo desassombrado como combina a abordagem quantitativa e qualitativa aos
processos de desenvolvimento, procurando regularidades inesperadas, mas resistindo
sempre a interpretá-las como determinismos a impor. A sua mais recente diatribe
incide na análise do modo evolutivo como as sociedades ocidentais (sobretudo
americana) e o seu braço armado em matéria de financiamento e de transmissão de
políticas que é o Banco Mundial se têm mais recentemente posicionado
relativamente às sociedades menos desenvolvidas e às alocações que consideram
razoáveis para os apoios de ajuda pública ou de financiamento de projetos.
Pritchett assinala duas alterações de grande significado. Primeiro, parece
predominar o apoio preferencial ao que poderíamos designar de pós-materialidade
do desenvolvimento, acentuando sobretudo apoios nos diferentes domínios da
imaterialidade do desenvolvimento. Depois, regista-se em alguns financiadores o
propósito de reduzir a alocação de recursos financeiros à erradicação de
situações de pobreza extrema, afastando por exemplo do grupo de beneficiários
desses apoios as classes médias dos países com aspirações de desenvolvimento.
Pritchett retira destas novas regularidades (factos
estilizados da ajuda pública e do financiamento internacional) a conclusão de
que o ocidente parece não estar disposto a apoiar processos de crescimento
económico nesses países, seja porque transcendem as situações de pobreza
extrema, seja porque não assegura a tal imaterialidade que se pretende
promover. Daí que coloque com razão a questão provocadora: “Será que os países
ricos são parceiros credíveis do desenvolvimento nacional?”
Há nesta deriva ocidental muito que se lhe diga e não é
seguramente a confirmação do altruísmo ocidental que está em causa. Como
Pritchett refere, financiar a erradicação da pobreza extrema é seguramente um
objetivo nobre, mas ao colocar de fora gente que ganha mais de um dólar (à
paridade de poder de compra) por dia equivale a lavar as mãos quanto ao destino
de uma massa imensa de pessoas das quais depende o dinamismo social de tais
países. Depois, pugnar pela imaterialidade do desenvolvimento equivale em
tempos práticos a sentenciamentos etnocentricamente assassinos do tipo: caros povos que aspiram ao desenvolvimento e a decidi-lo
em função das vossas convicções, nós, que já resolvemos os problemas da
privação material, queremos que se não se iludam com a materialidade do
desenvolvimento económico e que se concentrem antes na sua imaterialidade!
Ou seja, o tempo passou, o mundo mudou, o debate deu uma
pirueta enorme, mas a tentação etnocêntrica de decidir o futuro dos outros
persiste. No tempo da minha iniciação impunha-se um modelo de crescimento
económico e isso seria suficiente para reconverter tais sociedades de alto a
baixo. Hoje, negamo-nos a financiar o crescimento económico e advogamos a
imaterialidade sem crescimento. E não me venham com a história do Estado
Islâmico, transformado agora em argumento exemplar de que não podemos correr o
risco de financiar sem controlo as sociedades que aspiram ao desenvolvimento.
Isso é uma outra história, que se teria provavelmente evitado com a velha e
sensata máxima “ se não sabes não mexas”.
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