sexta-feira, 10 de abril de 2015

PIRUETAS DE UM DEBATE DE SEMPRE




Iniciei-me intelectualmente nos temas do crescimento económico, desenvolvimento e subdesenvolvimento, já há longo tempo para minha desgraça, com alguns temas de cabeceira e de entrada pelas noites dentro. Nesse universo de temas apaixonantes e envolventes estava seguramente o do crescimento versus desenvolvimento, com o qual a literatura do desenvolvimento e subdesenvolvimento tentava marcar a importância dos sistemas de valores democraticamente assumidos pelas sociedades e, por essa via, denunciava as tentações (frequentemente imposições) do mundo ocidental seja de impor etnocentricamente os valores ocidentais, seja de considerar que o crescimento económico era por si só capaz de fazer tábua rasa das raízes socioculturais das sociedades para as quais o crescimento era exportado.

Era o tempo em que o crescimento dourado dos anos cinquenta e primeira metade dos anos sessenta se tinha finado, que surgiam na sequência do maio de 68 (não sei o que me parece escrever maio de 68 com letra pequena) os primeiros sinais da crítica à sustentabilidade (ambiental) desses modelos de crescimento e que os mais críticos denunciavam que afinal não tínhamos nada de sólido a oferecer aos não ocidentais. Desde esse tempo que a memória afetiva considera gloriosos dada a animação, motivação e sentido de futuro com que se discutia tais temas e dado o ambiente de alguma “clandestinidade pacífica” com que o tema era discutido em algumas (muito poucas) cadeiras de fim de curso numa esclerosada Faculdade de Economia do Porto, então acantonada no sótão da velha Faculdade de Ciências, nos Leões hoje Reitoria, o debate evoluiu e realizou algumas piruetas inesperadas. O mundo mudou, na origem do tema e na sua aplicação, as realidades do desenvolvimento e do não desenvolvimento interpenetraram-se, o crescimento tornou-se mais global e os que equacionam hoje o seu futuro desenvolvimento fazem-nos com recursos potenciais mais potentes, o que não significa que o acesso aos mesmos e a sua absorção estejam garantidos.

Mas a mudança gerada no debate de então constitui uma pirueta, e que pirueta!

Lant Pritchett, um economista de Harvard na célebre Escola Kennedy de Administração Pública, é um especialista da economia do desenvolvimento dos mais prolixos e diversificados que conheço, sobretudo pelo modo desassombrado como combina a abordagem quantitativa e qualitativa aos processos de desenvolvimento, procurando regularidades inesperadas, mas resistindo sempre a interpretá-las como determinismos a impor. A sua mais recente diatribe incide na análise do modo evolutivo como as sociedades ocidentais (sobretudo americana) e o seu braço armado em matéria de financiamento e de transmissão de políticas que é o Banco Mundial se têm mais recentemente posicionado relativamente às sociedades menos desenvolvidas e às alocações que consideram razoáveis para os apoios de ajuda pública ou de financiamento de projetos. Pritchett assinala duas alterações de grande significado. Primeiro, parece predominar o apoio preferencial ao que poderíamos designar de pós-materialidade do desenvolvimento, acentuando sobretudo apoios nos diferentes domínios da imaterialidade do desenvolvimento. Depois, regista-se em alguns financiadores o propósito de reduzir a alocação de recursos financeiros à erradicação de situações de pobreza extrema, afastando por exemplo do grupo de beneficiários desses apoios as classes médias dos países com aspirações de desenvolvimento.

Pritchett retira destas novas regularidades (factos estilizados da ajuda pública e do financiamento internacional) a conclusão de que o ocidente parece não estar disposto a apoiar processos de crescimento económico nesses países, seja porque transcendem as situações de pobreza extrema, seja porque não assegura a tal imaterialidade que se pretende promover. Daí que coloque com razão a questão provocadora: “Será que os países ricos são parceiros credíveis do desenvolvimento nacional?”

Há nesta deriva ocidental muito que se lhe diga e não é seguramente a confirmação do altruísmo ocidental que está em causa. Como Pritchett refere, financiar a erradicação da pobreza extrema é seguramente um objetivo nobre, mas ao colocar de fora gente que ganha mais de um dólar (à paridade de poder de compra) por dia equivale a lavar as mãos quanto ao destino de uma massa imensa de pessoas das quais depende o dinamismo social de tais países. Depois, pugnar pela imaterialidade do desenvolvimento equivale em tempos práticos a sentenciamentos etnocentricamente assassinos do tipo: caros povos que aspiram ao desenvolvimento e a decidi-lo em função das vossas convicções, nós, que já resolvemos os problemas da privação material, queremos que se não se iludam com a materialidade do desenvolvimento económico e que se concentrem antes na sua imaterialidade!

Ou seja, o tempo passou, o mundo mudou, o debate deu uma pirueta enorme, mas a tentação etnocêntrica de decidir o futuro dos outros persiste. No tempo da minha iniciação impunha-se um modelo de crescimento económico e isso seria suficiente para reconverter tais sociedades de alto a baixo. Hoje, negamo-nos a financiar o crescimento económico e advogamos a imaterialidade sem crescimento. E não me venham com a história do Estado Islâmico, transformado agora em argumento exemplar de que não podemos correr o risco de financiar sem controlo as sociedades que aspiram ao desenvolvimento. Isso é uma outra história, que se teria provavelmente evitado com a velha e sensata máxima “ se não sabes não mexas”.

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