Li quase de rajada o último romance de Michel Houllebeck (MH), que aliás comprei em língua mãe e primeira edição por ocasião de uma passagem por Paris no início do ano. Sublinho que não tenho qualquer espécie de opinião pessoal estabilizada em relação ao autor francês, aliás altamente controverso e frequentemente acusado de cabotinismo, mas também já aqui confessei (posts de 25 de novembro de 2011 e de 23 de julho de 2014) que a inspiração da sua escrita e a essência das suas preocupações me tendem a tocar fundo – ou, e mais prosaicamente, que o dito me “caiu no goto”; ora, como gostos não se discutem...
O sexto livro de MH é mais uma vez, e do meu estrito ponto de vista, uma obra absolutamente extraordinária. Não me envolvo, até por escassez de competência específica, em discussões quanto à mediocridade da qualidade literária que alguns lhe apontaram, duvido fortemente da justeza de uma síntese em termos de “preguiçosa desenvoltura” e recuso liminarmente a ideia de um romance reacionário em defesa da restauração do patriarcado.
O que encontrei em “Submissão” (já disponível em tradução portuguesa) foi uma ficção literária que apresenta o grande mérito de ser incómoda, confrontando ideias e caminhos societais. E é o próprio a reconhecê-lo, em entrevista a propósito em que carateriza o seu trabalho afirmando: “le mot de politique fiction est pas mal”. Sendo que roça a genialidade a ideia de explorar a hipótese de uma França dirigida por um governo islâmico em 2022, após uma segunda volta presidencial entre um candidato derrotado da Frente Nacional e um candidato vencedor da “Fraternidade Muçulmana” (na sequência da negociação forçada de um apoio por parte das forças políticas tradicionais de centro-esquerda), e sendo também que resulta séria, muito séria mesmo, a reflexão implícita sobre uma Europa envelhecida, assustada, desvigorada, desligada...
MH explicou-se nestes termos: “procedo muitas vezes por ligeiros exageros – é o meu método; não sou um escritor plenamente realista, mas mais ligeiramente expressionista”; acrescentando “sim, eu penso que uma tal situação é possível, mas não no horizonte indicado”. Ou seja: um Ocidente decadente que de algum modo busca a salvação através do Islão – porque o movimento islamita em presença, sem prescindir dos seus valores essenciais, se vai mostrando moderado (passo ao lado de uma complexa questão feminina que aqui encaro como secundária e lateral) e até justo (“para eles, o essencial é a demografia e a educação”). Embora importe também sublinhar que MH não deixa de nos fazer vacilar quando penetra no âmago mais profundo dos seus propósitos: “Na minha opinião, a cena chave do livro é aquela em que ele olha pela última vez a virgem negra de Rocamadour, sente um poder espiritual, como ondas, e de repente ela afasta-se no século e ele volta a descer para o estacionamento, solitário e bastante desesperado”.
E depois, bem, depois há os detalhes, muitos e sublimes. Limito-me a deixar um: “Mas seria o bastante para justificar uma vida? E em que é que uma vida precisa de ser justificada? A totalidade dos animais, a esmagadora maioria dos homens, todos vivem sem nunca sentir a mais pequena necessidade de justificação. Vivem porque vivem, sem mais, e é assim que pensam; suponho que em seguida morrem porque morrem, e que, para eles, não há mais nada a analisar.” Ah, o ser e o pensar...
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