Christine Lagarde é daquelas personalidades que está
condenada à controvérsia e não será por isso que a considero menos do ponto de
vista dos radares deste blogue. Neste caso e no tempo histórico que vivemos,
Christine está condenada nas suas tomadas de posição públicas a ser porta-voz e
a expressar a bipolaridade de posições a que uma instituição como o FMI é
conduzida à medida que confronta as suas posições institucionais com os
resultados da investigação empírica que o seu bem dotado staff técnico vai acumulando. Porque uma de duas: ou se desvaloriza
a riqueza da investigação que a própria instituição vai produzindo ou então é
necessário adaptar o discurso aos referidos resultados e assim contrariar os
papagaios bem-falantes que entronizavam as posições da instituição para vender
internamente as suas próprias agendas.
Recordemos alguns desses papagaios malévolos e algumas
dessas agendas. Uma modinha muito em voga enquanto duraram os programas de
ajustamento foi a de que a criação de condições de lucratividade interna e externa
à custa do rebaixamento dos custos da mão-de-obra e da descida das taxas de
juro iria fazer recuperar a confiança dos investidores e assim recuperar o
motor do investimento privado. Recuperado esse motor, já não se fariam sentir
os impactos da anulação do investimento público, domesticado das suas
megalomanias e adaptado às reais possibilidades dos orçamentos públicos. A
modinha tornou-se dissonante, pois os custos unitários em trabalho cederam, o
investimento público finou-se e apesar disso o investimento privado não
disparou. Vale a pena mergulhar um pouco nas agruras em que Coelho e Portas se
meteram com a modinha da anulação do investimento público. A maioria chegou ao
poder a barafustar com a megalomania do investimento público da era Socrática,
aderiu ao discurso do excesso esbanjador das autoestradas, dos equipamentos a
torto e a direito, do edifício em vez do imaterial. Resultado: Bruxelas esteve
atenta e começou as negociações do Portugal 2020 ao ataque expressando às
delegações portuguesas que infraestruturas já eram. E aí o distraído Maduro
(não o da Venezuela mas o nosso) percebeu que tinha de recomeçar a negociação
ao contrário, mostrando que afinal algumas infraestruturas ainda eram
necessárias, que afinal nem tudo foi esbanjamento e até o inefável ministro
Crato confessou que se tivesse recursos a sua prioridade seria modernizar
escolas (será que ouvi bem senhor Ministro?). Efeito de tudo isto: Bruxelas
impôs mapeamento para todo o projeto em infraestruturas a financiar pelos FEEI
e os programas operacionais não poderão lançar avisos sem que Bruxelas aprove
antecipadamente a fundamentação para os projetos a candidatar. Mas Bruxelas
compreensivelmente não pode ser ela a aprovar projetos, pois seria contra os
regulamentos. E na prática ainda ninguém sabe de que é que se está a falar
quando se invoca o mapeamento prévio, numa demonstração de absoluta falta de
confiança na capacidade de decisão do país. Brilhante, cara maioria e tudo
reflexo de uma desconchavada e canhestra crítica do esforço infraestrutural
passado (largamente criticável na sequência de posições defendidas neste
blogue), motivada apenas pela modinha de que o investimento público poderia
finar-se, pois o investimento privado retomaria o seu estatuto de motor do
crescimento. Uma palavra também para a desajeitada posição que o PS tem
assumido em matéria de fundos estruturais, pois tinha aqui matéria que bastava
para brilhar e encostar Maduro e o governo à parede e não embrenhar-se em
questiúnculas de taxas de execução das quais não tirou nenhum proveito e
rapidamente as deixou cair.
Quando o Plano Juncker começou a tomar forma, Coelho e
Portas começaram a engolir em seco e terão percebido que meteram a pata (e que
pata!) na poça com a sua tese do finamento do investimento público (oh, oh why can’t we have a better political class?)
(Vejam-se as sucessivas falhas de previsão)
Pois, o FMI, na sequência de dois excelentes capítulos
analíticos do World Economic Outlook de 2015 (ver aqui versões em PDF), veio relembrar uma evidência que outros economistas não
ofuscados pela chamada economia da oferta já tinham assinalado com clareza: na
atual recuperação pós crise de 2007-2008, o investimento privado em maquinaria,
equipamento e instalações teve uma contração bem mais significativa do que a
experimentada noutros períodos recessivos. Ora esta evidência era suficiente
para perceber que aqui havia gato e não muito difícil de descobrir. O
investimento privado recuou mais pois não só o esforço de desendividamento
empresarial foi mais imperioso do que noutras recessões, como o ambiente global
de negócios estava ferido de incerteza e indeterminação, ainda por cima trágica
e estupidamente agravado pelas doses excessivas de austeridade decretadas, sem
atender ao momento das economias avançadas e emergentes.
Madame Lagarde escudada por tais capítulos analíticos vem
agora dizer o óbvio, que para deslindar este lio, por algum lado terá de ser estimulado o ambiente global de negócios para que o investimento privado possa
de facto recuperar. Obviamente pela vertente do investimento público, não como
um elemento de criação de falsa e artificial dinâmica económica, mas como
processo seletivo de identificação de investimentos públicos (em
infraestruturas claro está) geradores de retorno suficiente a prazo para pagar
o eventual endividamento que venham a exigir (argumento que o já célebre modelo
de Summers e DeLong em 2012 mostrou com clareza e elegância de demonstração
matemática). O que mostra que é uma completa falácia admitir que só a economia
matematizada tem reconhecimento. O modelo de Summers e DeLong tem uma elegância
formal a toda a prova e não foi por isso influenciador de uma viragem da
política macroeconómica.
Não sei se Madame Lagarde descobriu ou simplesmente redescobriu
que “global demand matters”. Vestida (com gosto
e classe, diga-se) nas modernas boutiques de Saint Honoré em Paris, dos
costureiros de Milão ou da Nova Iorque mais sofisticada, tenho para mim que
Madame Lagarde pronunciará agora estas “verdades”inspiradas pela investigação
de suporte ao World Economic
Outlook com a mesma aparente convicção com que outrora (antes da
descoberta dos malfadados multiplicadores ao contrário) defendia as
desvalorizações internas dos programas de ajustamento.
Por tudo isto me fascinam (não a Madame Lagarde) as
condições que levam o pensamento económico a transformar-se em maus paradigmas
de política macroeconómica ou a ser incapaz de os derrubar.
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