A edição de ontem do Quadratura do Círculo é das tais que
fica seguramente para memória futura, neste modelo curioso de debate a três
sempre com a presença implícita de António Costa, de cuja passagem pelo
programa os atuais intervenientes parecem não ser capazes de se separar. E fica
para memória futura porque o tema em discussão, o documento macroeconómico do
grupo dos 12 economistas apresentado pelo PS, suscitou de António Lobo Xavier
(ALX), Jorge Coelho (JC) e José Pacheco Pereira (JPP) uma sugestiva antecipação
de algumas questões que considero cruciais para compreender as condições de
exequibilidade de uma governação alternativa (dois em um) à que precipitou o
pedido de resgate e à desgraçada e ideológica implementação do programa de
ajustamento ditado por esse mesmo resgate.
As incidências do debate foram como quase sempre marcadas
pela agressividade de argumentação de JPP, quando colocou preto no branco as
questões da relação entre a economia e a política. Segundo JPP, Costa e o PS
terão caído na armadilha de abordarem o quadro macroeconómico antes do
pronunciamento político, ficando por isso manietados na elaboração de um
programa político, pois cada iniciativa de política setorial a propor como
rotura deparar-se-á com a camisa-de-forças do documento macroeconómico. JPP
parte do princípio de que a representação identitária de uma governação
alternativa com os portugueses que penam e sofrem, cá ou na diáspora forçada,
será sempre conseguida, não com as eventuais virtudes e credibilidade de um
quadro macroeconómico, mas com pronunciamentos políticos claros no contexto dos
constrangimentos económicos que interessa obviamente explicitar. Ou seja,
forçando o primado da política sobre a economia.
Não tenho qualquer dificuldade em identificar-me com esta
ideia do primado da política sobre a economia. Mas, no contexto e face ao tipo
de transformações que são solicitadas à economia portuguesa, ou seja, face a um
constrangimento europeu sobre o qual, sozinhos, pesamos muito pouco (o que não
significa que não possamos influenciar o rumo da política) e tendo em conta que
estamos a desafiar inércias internas profundas, tenho muitas dúvidas sobre se a
questão das relações entre a economia e a política podem continuar a ser
interpretadas do mesmo modo como o fazíamos antes de 2007-2008. Assim, por um
lado, duvido que os 12 economistas que trabalharam em torno do documento agora
em discussão o tenham elaborado sem internalizarem as condições da sua
concretização política, embora admitindo que a infeliz expressão do “exercício
realizado” faça pressupor essa possibilidade. Por outro lado, o pronunciamento
político que JPP exigia ao PS antes de apresentar o referencial macroeconómico
(siga-o ou não nos próximos episódios) dificilmente pode ser equacionado não
pensando nos constrangimentos económicos e comunitários.
Tudo isto admitindo que estamos na União Europeia e na
zona euro imperfeitas e não solidárias quanto baste, que queremos nelas
permanecer lutando ativamente para a minimização dessas imperfeições e falta de
solidariedade, que não podemos ignorar a fragilidade de parte do nosso tecido
empresarial, que não é um programa político que pode substituir-se ao
necessário robustecimento de capacidade empresarial, mas que queremos governar
em condições de estabilidade para potenciar as transformações necessárias.
Neste contexto, para retomar a crítica de JPP, em que é
que poderá consistir a apresentação de um posicionamento que rompa sem tréguas
ou delongas com o quadro que a atual maioria e uma certa Europa querem
armadilhar e aprisionar o PS? Ou, perguntando de outro modo, que alternativas
haverá entre uma abordagem (com possíveis variantes e afinamentos) do tipo da
que o documento dos 12 nos propõe e uma alternativa do tipo SYRIZA, mais forjado
no pronunciamento político e menos na consistência do quadro macroeconómico
possível? Existirá esse espaço e é a nossa inventiva reprimida e já
condicionada pelo “não há alternativas” que está a impedir a procura dessas
alternativas?
É verdade que o pronunciamento político do SYRIZA chegou
a ter cerca de 75% de representatividade identitária na opinião pública grega e
isso mostrou que politicamente é sempre possível ousar. Mas também é verdade
que esse pronunciamento político à medida que se confrontou com a necessidade
de se acomodar a um quadro macroeconómico e negociar com gente que faz do dolo
e do dictat as armas de negociação
(imposição) tem vindo perigosamente a esboroar-se.
Face a estes argumentos, a apresentação do documento
antes do pronunciamento político de Costa e do PS de todas as tendências não me
parece ser uma falência irremediável. Sobretudo se Costa e o PS forem capazes
de retomar a centralidade do debate político em torno do documento. Esse debate
vai ser fundamental para se compreender que alianças possíveis no futuro quadro
parlamentar é possível antecipar e em que contexto poderemos ter forças
políticas à esquerda do PS (neófitas ou habitués do Parlamento) a viabilizar
uma governação que não se afaste decisivamente dos termos do documento agora
apresentado. Nesta matéria, ao contrário do que alguns jornalistas peregrinos
têm insinuado, o documento agora em debate não precipita o PS nos braços de um
acordo de bloco central com a atual maioria. Mas tenho para mim que outro galo
cantaria se a social-democracia do PSD não estivesse enterrada na cartilha dos
Marco Antónios, piu-piu Maçães e outros jovens ideólogos atualmente no poder. A
minha grande dúvida é se essa corrente social-democrata do PSD em que
certamente JPP se reveria existe ou se estará porventura mumificada e acomodada
em outras lides bem menos exigentes para a vida pessoal de cada um. Se
existisse e estivesse no poder então haveria espaço para aproximações (vejam-se
as posições de Manuela Ferreira Leite). Com estes travestidos
social-democratas em exercício qualquer acordo ou aproximação do PS
atirá-lo-iam para a irrelevância política e eleitoral. Estou certo que não é a
isso que Costa vem.
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