quinta-feira, 23 de abril de 2015

RÉPLICAS EM TORNO DO DOCUMENTO DOS 12



O quadro de cenarização macroeconómica de suporte a uma possível governação PS, elaborado pelo grupo de economistas sob a coordenação de Mário Centeno, não é propriamente equivalente a um abalo telúrico na política nacional. Mas não há dúvida que marca o debate político para os próximos tempos, sobretudo se o PS for capaz de em torno desta dinâmica ir criando uma alternativa de representação identitária na população portuguesa, com a coerência de um discurso político sobre as opções macroeconómicas agora apresentadas. Não houve um abalo telúrico, mas marcou o rumo do debate político e as réplicas em torno do documento têm-se sucedido, merecendo neste espaço o comentário devido, ao mesmo tempo que se analisam em maior profundidade algumas das propostas do documento, que aqui considerámos em post anterior um contributo sério para forjar uma alternativa de governação.

Que a maioria iria responder ao documento acenando de novo com um eventual regresso da Troika, que o iria rotular de despesista, de irreal e utópico, de incompatibilidade com as regras europeias também assinadas de cruz pelos socialistas europeus, era antecipável. Mas essa reação é a melhor evidência de que o documento muda radicalmente as condições do debate política e coloca a maioria na defensiva. Aliás, como já aqui o tinha denunciado, o posicionamento da maioria no período eleitoral vai ser rudimentar e baseado nos seguintes vetores: (i) invocar uma retoma e melhoria da atividade económica que convence muito poucos; (ii) martelar até à exaustão a situação de bancarrota que determinou o pedido de bail-out; e (iii) se as coisas evoluírem para o torto procurar colar a eventual governação de Costa ao consulado governativo de Sócrates, mantendo sempre a prisão de Évora como arma de arremesso sem a citar. Ora, se a réplica da maioria ao documento está em linha com este posicionamento, a verdade é que se trata de uma posição defensiva, sem rasgo para atrair eleitores menos convencidos e concede ao PS a liderança do rumo dos acontecimentos, isto, repito, se o documento for secundado por um discurso político coerente.

O que é lamentável não é a reação da maioria, expectável e sem inteligência pensante credível para ousar meter-se por uma discussão taco a taco das propostas apresentadas. O que é simplesmente indigente é a reação de uma grande parte do jornalismo que interveio sobre o assunto, jornalismo económico e não só, com reações do tipo “meter o Rossio na Betesga” do inefável José Manuel Fernandes ou do tipo dos argumentos de quem viu apenas no documento dos 12 despesas certas hoje e receitas incertas amanhã. E é lamentável e intelectualmente indigente, porquê? É indigente porque o debate económico esclarecido e fundamentado mostra que a ultrapassagem de situações como a portuguesa e a europeia em geral pode ser experimentada pela intervenção no lado da oferta ou por uma intervenção mais ampla do lado da procura. Está hoje demonstrado que a economia da oferta não resolveu o problema europeu, antes o agravou para níveis que tornam cada vez menos provável o êxito das intervenções corretoras de oferta. Está também demonstrado (e a última investigação publicada pelo próprio FMI ilustra-o cabalmente) que a queda do investimento privado e a sua não recuperação prendem-se com o ambiente global de estagnação económica que é necessário inverter com um choque de procura. No caso português, o ambiente de estagnação económica global não favorece a mudança estrutural do perfil de especialização produtiva da economia portuguesa. É necessário projetar a economia para um limiar de crescimento para projetar essa mudança. E sabemos que a desvalorização interna, a desvalorização do trabalho, a promoção sistemática e deliberada da desigualdade não são o ambiente propício a essa mudança de paradigma produtivo. É por isso necessário ousar uma abordagem alternativa aos problemas. E sem radicalismos (e com algumas cedências à economia da oferta, a analisar mais adiante) é isso que o documento propõe.

O argumento de que o documento propõe despesas certas hoje e receitas incertas amanhã é vicioso. Mas não foi isso, afinal, que a terapia europeia e da maioria andaram a prometer com a ideia de que as reformas estruturais trariam o crescimento e o aumento das receitas para além da brutal carga de impostos a que fomos submetidos? O crescimento não esteve sempre apontado como o companheiro indissociável da terapia da austeridade? Mas não ficou bem evidente que esse crescimento é fortemente penalizado pela intensidade da própria austeridade?

Por tudo isto considero que o jornalismo que não discute seriamente as opções apresentadas é indigente. Mais valia que fossem funcionários de jornais partidários ou de gabinetes de imprensa e que escrevessem nesse estatuto. Pelo menos era mais claro e não enganavam cidadãos incautos e desprevenidos.

Como já referi anteriormente, numa perspetiva de governação alternativa o documento tem como seria de prever alguns desequilíbrios e pode suscitar algumas dificuldades sobretudo na perspetiva de alargamento de consensos à esquerda para eventuais acordos parlamentares que, em caso de vitória à míngua, o PS tenha de realizar para governar.

Para já, embora me considere preocupado pela fadiga fiscal em que se encontra parte do eleitorado que pode votar PS, concordo com a ideia de não ser possível aligeirar significativamente a carga fiscal para assegurar a transição e a mudança de paradigma de abordagem macroeconómica. Interrogo-me, porém, como pelos vistos também se interrogaram diferentes elementos da Comissão Política do PS, a que propósitos corresponde a cedência à economia da oferta na questão da TSU. Nos meus contactos profissionais e até de gestão na empresa em que trabalho, fico por vezes impressionado como as gerações mais jovens se referem à quase convicção de que não terão no seu tempo reformas que se vejam e se recomendem e sobretudo com a indiferença complacente com que muitos se referem a essa questão. Ora, quando lia o documento dos 12 nesta matéria, fiquei com a impressão que os seus autores pensaram em termos similares. Sei que a sustentabilidade da segurança social será sobretudo um problema futuro de emprego, de produtividade e provavelmente de complementos privados a constituir. O documento propõe a diversificação de modalidades de financiamento da segurança social tais como o imposto sobre sucessões e a repercussão para as empresas dos custos de projeção para on desemprego de trabalhadores. Mas, em simultâneo, aponta para uma descida gradual das contribuições para a segurança social de empregadores (a realizar em função do comportamento das já referidas modalidades adicionais de financiamento) e, durante um período experimental, a própria redução das contribuições de trabalhadores, limitada a indivíduos com menos de 60 anos, com a correspondente redução de pensões a pagar a partir de 2027.

A redução das contribuições de empregadores pode ser vista como uma cedência à economia da oferta, mas lança o programa numa perigosa identificação com os fantasmas da TSU. Já a redução (experimental) das contribuições dos trabalhadores com menos de 60 anos é apresentado como um auto-empréstimo intertemporal que visa relançar a procura a curto prazo. Tenho sérias dúvidas sobre a bondade destas medidas. Por um lado, reduzir contribuições de empregadores em ambiente de estagnação económica global pode não ser um fator estimulante do investimento e do emprego como o documento sustenta. Por outro lado, não é líquido que a redução das contribuições de trabalhadores não abra uma Caixa de Pandora sobre a desvalorização que as populações mais jovens podem começar a atribuir ao sistema de segurança social pública. É isso que, por exemplo, Bagão Félix vaticina associando a medida dos 12 à implosão do Sistema de Previdência Social (ver blogue no Público).

Se adicionarmos a esta matéria a orientação para focar as prestações sociais provenientes de regimes não contributivos em medidas “means tested” (sujeitas à demonstração de condições de recursos) pode concluir-se que o documento pisca o olho a uma certa perspetiva liberal de mercado que tem vindo a influenciar a social-democracia nas questões sociais. Claro que Francisco Assis exultou com a medida e isso para mim não é um indicador confortável. O grupo dos 12 lá terá as suas razões para o ter feito e até imagino que possa ser o resultado da necessidade de garantir consensos alargados entre o próprio grupo. Mas o que é importante reconhecer é que a introdução destes elementos no documento vai perturbar a sua comunicação como instrumento de vinculação a uma lógica de abordagem pela procura, que rompe com a mal sucedida política atual. Algum jornalismo malévolo vai centrar-se nestes aspetos e não na filosofia global do documento. As cedências à economia da oferta podem pagar-se caro e sem vantagens evidentes dessa cedência.

A análise das alterações propostas para o mercado de trabalho (com as quais convivo melhor) fica para um futuro post.

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