O quadro de cenarização macroeconómica de suporte a uma
possível governação PS, elaborado pelo grupo de economistas sob a coordenação
de Mário Centeno, não é propriamente equivalente a um abalo telúrico na
política nacional. Mas não há dúvida que marca o debate político para os
próximos tempos, sobretudo se o PS for capaz de em torno desta dinâmica ir
criando uma alternativa de representação identitária na população portuguesa,
com a coerência de um discurso político sobre as opções macroeconómicas agora apresentadas.
Não houve um abalo telúrico, mas marcou o rumo do debate político e as réplicas
em torno do documento têm-se sucedido, merecendo neste espaço o comentário
devido, ao mesmo tempo que se analisam em maior profundidade algumas das
propostas do documento, que aqui considerámos em post anterior um contributo sério para forjar uma alternativa de
governação.
Que a maioria iria responder ao documento acenando de
novo com um eventual regresso da Troika, que o iria rotular de despesista, de
irreal e utópico, de incompatibilidade com as regras europeias também assinadas
de cruz pelos socialistas europeus, era antecipável. Mas essa reação é a melhor
evidência de que o documento muda radicalmente as condições do debate política
e coloca a maioria na defensiva. Aliás, como já aqui o tinha denunciado, o
posicionamento da maioria no período eleitoral vai ser rudimentar e baseado nos
seguintes vetores: (i) invocar uma retoma e melhoria da atividade económica que
convence muito poucos; (ii) martelar até à exaustão a situação de bancarrota
que determinou o pedido de bail-out;
e (iii) se as coisas evoluírem para o torto procurar colar a eventual
governação de Costa ao consulado governativo de Sócrates, mantendo sempre a
prisão de Évora como arma de arremesso sem a citar. Ora, se a réplica da
maioria ao documento está em linha com este posicionamento, a verdade é que se
trata de uma posição defensiva, sem rasgo para atrair eleitores menos
convencidos e concede ao PS a liderança do rumo dos acontecimentos, isto,
repito, se o documento for secundado por um discurso político coerente.
O que é lamentável não é a reação da maioria, expectável
e sem inteligência pensante credível para ousar meter-se por uma discussão taco
a taco das propostas apresentadas. O que é simplesmente indigente é a reação de
uma grande parte do jornalismo que interveio sobre o assunto, jornalismo
económico e não só, com reações do tipo “meter o Rossio na Betesga” do inefável
José Manuel Fernandes ou do tipo dos argumentos de quem viu apenas no documento
dos 12 despesas certas hoje e receitas incertas amanhã. E é lamentável e
intelectualmente indigente, porquê? É indigente porque o debate económico
esclarecido e fundamentado mostra que a ultrapassagem de situações como a
portuguesa e a europeia em geral pode ser experimentada pela intervenção no
lado da oferta ou por uma intervenção mais ampla do lado da procura. Está hoje
demonstrado que a economia da oferta não resolveu o problema europeu, antes o
agravou para níveis que tornam cada vez menos provável o êxito das intervenções
corretoras de oferta. Está também demonstrado (e a última investigação
publicada pelo próprio FMI ilustra-o cabalmente) que a queda do investimento
privado e a sua não recuperação prendem-se com o ambiente global de estagnação
económica que é necessário inverter com um choque de procura. No caso
português, o ambiente de estagnação económica global não favorece a mudança
estrutural do perfil de especialização produtiva da economia portuguesa. É
necessário projetar a economia para um limiar de crescimento para projetar essa
mudança. E sabemos que a desvalorização interna, a desvalorização do trabalho,
a promoção sistemática e deliberada da desigualdade não são o ambiente propício
a essa mudança de paradigma produtivo. É por isso necessário ousar uma
abordagem alternativa aos problemas. E sem radicalismos (e com algumas
cedências à economia da oferta, a analisar mais adiante) é isso que o documento
propõe.
O argumento de que o documento propõe despesas certas
hoje e receitas incertas amanhã é vicioso. Mas não foi isso, afinal, que a
terapia europeia e da maioria andaram a prometer com a ideia de que as reformas
estruturais trariam o crescimento e o aumento das receitas para além da brutal
carga de impostos a que fomos submetidos? O crescimento não esteve sempre
apontado como o companheiro indissociável da terapia da austeridade? Mas não
ficou bem evidente que esse crescimento é fortemente penalizado pela
intensidade da própria austeridade?
Por tudo isto considero que o jornalismo que não discute
seriamente as opções apresentadas é indigente. Mais valia que fossem
funcionários de jornais partidários ou de gabinetes de imprensa e que
escrevessem nesse estatuto. Pelo menos era mais claro e não enganavam cidadãos
incautos e desprevenidos.
Como já referi anteriormente, numa perspetiva de
governação alternativa o documento tem como seria de prever alguns
desequilíbrios e pode suscitar algumas dificuldades sobretudo na perspetiva de
alargamento de consensos à esquerda para eventuais acordos parlamentares que,
em caso de vitória à míngua, o PS tenha de realizar para governar.
Para já, embora me considere preocupado pela fadiga
fiscal em que se encontra parte do eleitorado que pode votar PS, concordo com a
ideia de não ser possível aligeirar significativamente a carga fiscal para
assegurar a transição e a mudança de paradigma de abordagem macroeconómica.
Interrogo-me, porém, como pelos vistos também se interrogaram diferentes
elementos da Comissão Política do PS, a que propósitos corresponde a cedência à
economia da oferta na questão da TSU. Nos meus contactos profissionais e até de
gestão na empresa em que trabalho, fico por vezes impressionado como as
gerações mais jovens se referem à quase convicção de que não terão no seu tempo
reformas que se vejam e se recomendem e sobretudo com a indiferença complacente
com que muitos se referem a essa questão. Ora, quando lia o documento dos 12
nesta matéria, fiquei com a impressão que os seus autores pensaram em termos
similares. Sei que a sustentabilidade da segurança social será sobretudo um
problema futuro de emprego, de produtividade e provavelmente de complementos
privados a constituir. O documento propõe a diversificação de modalidades de
financiamento da segurança social tais como o imposto sobre sucessões e a
repercussão para as empresas dos custos de projeção para on desemprego de
trabalhadores. Mas, em simultâneo, aponta para uma descida gradual das
contribuições para a segurança social de empregadores (a realizar em função do
comportamento das já referidas modalidades adicionais de financiamento) e,
durante um período experimental, a própria redução das contribuições de
trabalhadores, limitada a indivíduos com menos de 60 anos, com a correspondente
redução de pensões a pagar a partir de 2027.
A redução das contribuições de empregadores pode ser
vista como uma cedência à economia da oferta, mas lança o programa numa
perigosa identificação com os fantasmas da TSU. Já a redução (experimental) das
contribuições dos trabalhadores com menos de 60 anos é apresentado como um
auto-empréstimo intertemporal que visa relançar a procura a curto prazo. Tenho
sérias dúvidas sobre a bondade destas medidas. Por um lado, reduzir
contribuições de empregadores em ambiente de estagnação económica global pode
não ser um fator estimulante do investimento e do emprego como o documento
sustenta. Por outro lado, não é líquido que a redução das contribuições de
trabalhadores não abra uma Caixa de Pandora sobre a desvalorização que as
populações mais jovens podem começar a atribuir ao sistema de segurança social
pública. É isso que, por exemplo, Bagão Félix vaticina associando a medida dos
12 à implosão do Sistema de Previdência Social (ver blogue no Público).
Se adicionarmos a esta matéria a orientação para focar as
prestações sociais provenientes de regimes não contributivos em medidas “means tested” (sujeitas à demonstração
de condições de recursos) pode concluir-se que o documento pisca o olho a uma
certa perspetiva liberal de mercado que tem vindo a influenciar a
social-democracia nas questões sociais. Claro que Francisco Assis exultou com a
medida e isso para mim não é um indicador confortável. O grupo dos 12 lá terá
as suas razões para o ter feito e até imagino que possa ser o resultado da
necessidade de garantir consensos alargados entre o próprio grupo. Mas o que é importante reconhecer é que a introdução destes
elementos no documento vai perturbar a sua comunicação como instrumento de
vinculação a uma lógica de abordagem pela procura, que rompe com a mal sucedida
política atual. Algum jornalismo malévolo vai centrar-se nestes aspetos e não
na filosofia global do documento. As cedências à economia da oferta podem
pagar-se caro e sem vantagens evidentes dessa cedência.
A análise das alterações propostas para o mercado de
trabalho (com as quais convivo melhor) fica para um futuro post.
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