Uma rápida leitura da imprensa de sábado, rápida porque
está sol de novo e é preciso arejar as meninges e há tempo lá para a noite
para regressar a reflexões mais profundas, permite construir um universo de
perceções do ambiente político, um pouco fuzzy,
direi a roçar para o louco, que se vive no reino.
Imagino que seja assim que os políticos constroem a sua
própria perceção do contexto em que estão a intervir. A imprensa, a televisão e
a rádio devem constituir o seu material de perceções, até porque não acredito
que nas suas idas ao terreno, para câmara de televisão ver e captar, lhes seja
possível recolher perceções mais sistemáticas.
Utilizando este critério, parece inquestionável que a
trajetória afirmativa de António Costa está em apuros, restando saber se ele próprio
tem a perceção das agruras que a perceção exterior permite construir. Para além
dos contactos que tive em plena campanha eleitoral interna do PS e
simpatizantes, nunca em termos profissionais ou pessoais tive qualquer contacto
com António Costa que me permita compreender a sua personalidade e uma coisa é
o ambiente de debate do Quadratura, outra coisa bem diferente é a da pressão da
decisão política em contextos quase sempre adversos e de grande indeterminação.
Em reunião de trabalho de já uns meses, o diretor do planeamento estratégico da
Câmara Municipal de Lisboa dizia-me que o então ainda presidente da CML era
fortemente determinado mas muito teimoso. Mas é pouco para tentar compreender
como é que o próprio Costa lerá estes sinais óbvios de dificuldade de concretização
de uma trajetória de afirmação.
Na minha leitura, julgo estarmos perante um caso típico
de subvalorização de adversários e de contexto. A canhestra governação da
maioria que Costa tão bem denunciou nas suas incursões pelo Quadratura não é
necessariamente significado de canhestra preparação do cenário eleitoral e
nesta última matéria o espirito crítico da sociedade portuguesa parece estar
tragicamente limitado à argúcia sem limites de José Pacheco Pereira que prega
praticamente no deserto na sua impiedosa desconstrução da propaganda eleitoral do
governo (ver a sua última intervenção no Quadratura que antecipava já a sua
mais estruturada crónica de hoje no Público). Para além disso, parece não ter
havido uma adequada avaliação das incidências do período que iria mediar entre
a vitória interna no PS e a apresentação da sua alternativa de governação,
sobretudo do ponto de vista da sua relação com a comunicação social, pois o
drama disto tudo é que a ligação dos candidatos a uma alternativa com a população
é hoje fortemente intermediada pela comunicação social e não é seguro (passe o
trocadilho) que essa intermediação seja inocente. Em termos políticos, o comentário
centra-se no facto de Costa não estar a conseguir polarizar o combate político,
eu diria antes que Costa não está a conseguir projetar-se como representação
política dos que aspiram a ver-se livres desta maioria e que experimentaram na
pele o empobrecimento e a queda de qualidade de vida de um ajustamento que não projetou
estruturalmente o país para os desafios que estão intactos. E aqui permitam-me
que diga que isso não é apenas um problema de Costa, embora as esperanças
quanto à sua liderança fossem a esse nível muito altas, que ele próprio criou. É
que estamos a esquecer que o PS não é apenas Costa. Em termos crus e
impopulares, como é que um PS que se projeta no constante abre boca de gente
como António Vitorino, Sérgio Sousa Pinto, o próprio Ferro Rodrigues
frequentemente infeliz, José Lello, Belém Roseira e outras personalidades, já
para não falar do lio Sócrates, pode bipolarizar alguma coisa? Será que alguns
dos indivíduos e famílias se sente representado por tais personalidades quando
dissertam sobre tudo em nome do PS? Eu pela minha parte não me sinto e não
consigo estabelecer o corte sanitário entre Costa e tais acompanhantes. E não
serei certamente o único.
A subvalorização do contexto de preparação das
presidenciais parece hoje também evidente. Primeiro por ter deixado que se
instalasse um ambiente messiânico de regresso de Guterres, o qual tenho
sinceramente muitas dúvidas que fosse como Presidente da República (mesmo com a
presença constante do confessor Milícias) a personalidade abrangente que o país
hoje necessita. Sempre achei que a saída de Guterres foi demasiado traumática para
uma revisita normal ao local das operações. Aquela ideia de pântano numa personalidade
tão dada à introspeção como Guterres terá deixado marcas que nem sempre o tempo
apaga. Depois, porque a forma atabalhoada como o eventual apoio a uma
candidatura presidencial de António Nóvoa corre o risco de um trágico 2 em 1:
nem resolve o problema do PS, e ainda por cima amarra uma candidatura de largo
espectro cívico a uma trapalhada partidária que está nos antípodas do
pensamento de Nóvoa.
E aqui vai uma larga e mui respeitosa chapelada pela paciência
cívica de António Nóvoa com que tem aturado as diatribes jornalísticas que até
ousaram desenterrar a memória de Saldanha Sanches e um júri universitário para evidenciar
que António Nóvoa não é capaz de uma magistratura de influência. Admito que Nóvoa
tenha uma conceção de país fortemente marcada pelo lugar redentor que ele atribui
à educação e à qualificação dos portugueses como fator de todas as mudanças
possíveis e que tenha de construir uma visão mais larga inserindo aí a questão
do perfil produtivo a construir. Mas não tenho dúvidas que António Nóvoa tem
uma clara ideia do papel de Portugal no mundo e que sobretudo pode trazer à política
uma dimensão ética socialmente empenhada de que todos estamos precisados.
Por isso é simplesmente nojenta e nauseabunda a forma
como alguma imprensa vem agora clamar que o homem não tem passado político. Primeiro,
andaram a clamar que há uma larga insatisfação na sociedade portuguesa e que
muitos se sentem representados por uma outra forma de fazer política,
arvorando-se como os grandes arautos dessa insatisfação. Agora, que surge uma
personalidade proveniente da sociedade civil e com ética social de empenhamento
aqui d’el rei que não tem experiência política. Não há pachorra.
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