As línguas que não a nossa têm segredos recônditos e
ocultos que não há tradutor automático que as possa colocar ao nosso alcance. Isto
proporciona uma frustração, contida é certo, mas que não deixa de ser uma
frustração quando mergulhamos na literatura traduzida e nos deixamos conduzir
pela intuição e competência do tradutor. O castelhano está entre essas línguas
que a nossa propensão para o portunhol impede de explorar, lendo em castelhano
e procurando penetrar nos tais segredos recônditos e ocultos.
Tudo isto vem à reflexão depois de ler o discurso do
escritor Juan Goytisolo na cerimónia em que recebeu das mãos dos monarcas espanhóis
o Prémio Cervantes que vem juntar-se a um longo rol de prémios atribuídos à
diversificada obra do escritor e também jornalista catalão (as suas reportagens em Sarajevo para o El País ficaram-me na memória).
“A la llana y sin
rodeos” que o Google traduz por “simples e sem rodeios” é o título da alocução de Goytisolo, o qual surpreendentemente vai buscar ao espírito
cervantino inspiração para um contundente pronunciamento sobre a realidade artística,
política e social espanhola, num tom que os monarcas talvez não desejassem
associar a tal cerimónia.
Goytisolo começa a sua alocução por dividir a classe em
literatos, escritores que buscam o estrelato e o mediatismo e os incuráveis
aprendizes de escritor, separando as águas entre o efémero e o que perdurará: “Ajena a toda manipulación y teatro de títeres, la verdadera
obra de arte no tiene prisas.” Para além disso, adversário de
qualquer nacionalismo, Goytisolo considera-se portador de uma nacionalidade
cervantina: “Cervantear es aventurarse en el
territorio incierto de lo desconocido con
la cabeza cubierta con un frágil yelmo bacía. Dudar de los dogmas y supuestas
verdades como puños nos ayuda a eludir el dilema que nos acecha entre la
uniformidad impuesta por el fundamentalismo de la tecnociencia en el mundo
globalizado de hoy y la previsible reacción violenta de las identidades religiosas
o ideológicas que sienten amenazados sus credos y esencias.”
Depois, inspirando-se na vida de miséria que Cervantes
experimentou no período em que redigiu a primeira parte de D. Quixote, Goytisolo
arremete violentamente contra a crise económica, política e social espanhola: “Volver a Cervantes y asumir la locura de su personaje
como una forma superior de cordura, tal es la lección del Quijote. Al hacerlo
no nos evadimos de la realidad inicua que nos rodea. Asentamos al revés los
pies en ella. Digamos bien alto que podemos. Los contaminados por nuestro primer escritor no nos
resignamos a la injusticia.”
Não surpreendentemente, foi a frase “Digamos
bien alto que podemos” que marcou decisivamente a cobertura da
atribuição do prémio Cervantes”.
Sem comentários:
Enviar um comentário